quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

VALIOSOS APONTAMENTOS

Alcançáramos a orla do mar, em plena noite.

A movimentação da vida espiritual era aí mui­to intensa.

Desencarnados de várias procedências reencon­travam amigos que ainda se demoravam na Terra, momentâneamente desligados do corpo pela anes­tesia do sono. Dentre esses, porém, salientava-se grande número de enfermos.

Anciães, mulheres e crianças, em muitos as­pectos diferentes, compareciam ali, sustentados pelos braços de entidades numerosas que os assistiam.

Conversações edificantes e lamentos doloridos chegavam até nós.

Serviços magnéticos de socorro urgente eram improvisados aqui e além... E o ar, efetivamente, confrontado ao que respirávamos na área da cida­de, era muito diverso.

Brisas refrescantes sopravam de longe, car­reando princípios regeneradores e insuflando em nós delicioso bem estar.

— O oceano é miraculoso reservatório de for­ças — elucidou Clarêncio, de maneira expressiva —; até aqui, muitos companheiros de nosso plano tra­zem os irmãos doentes, ainda ligados ao corpo da Terra, de modo a receberem refazimento e repouso. Enfermeiros e amigos desencarnados desvelam-se na reconstituição das energias de seus tutelados. Qual acontece na montanha arborizada, a atmos­fera marinha permanece impregnada por infinitos recursos de vitalidade da Natureza. O oxigênio sem mácula, casado às emanações do planeta, Con­verte-se em precioso alimento de nossa organização espiritual, principalmente quando ainda nos acha­mos direta ou indiretamente associados aos fluidos da matéria mais densa.

Passávamos agora na vizinhança de uma dama extremamente abatida, quase em decúbito dorsal à frente das águas, recolhendo o auxílio magnético de um benfeitor que se iluminava no serviço e na oração.

Clarêncio deixou-nos por momentos, conversou algo com um amigo, a pequena distância, e regres­sou, informando:

— Trata-se de irmã do nosso círculo pessoal, assediada pelo câncer. Foi retirada do veículo fí­sico, através da hipnose, a fim de obter a assis­tência que lhe é necessária.

— Mas — objetei, curioso — esse tipo de tra­tamento pode sustar o desequilíbrio das células orgânicas? a doente conseguirá curar-se, de modo positivo?

O Ministro sorriu e aclarou:

— Realmente, na obra assistencial dos espí­ritos amigos, que interferem nos tecidos sutis da alma, é possível, quando a criatura se desprende parcialmente da carne, a realização de maravilhas.

Atuando nos centros do perispírito, por vezes efe­tuamos alterações profundas na saúde dos pacien­tes, alterações essas que se fixam no corpo somá­tico, de maneira gradativa. Grandes males são assim corrigidos, enormes renovações são assim realizadas. Mormente quando encontramos o ser­viço da prece na mente enriquecida pela fé transformadora, facilitando-nos a intervenção pela pas­sividade construtiva do campo em que devemos operar, a tarefa de socorro concretiza verdadeiros milagres. O corpo físico é mantido pelo corpo es­piritual a cujos moldes se ajusta e, desse modo, a influência sobre o organismo sutil é decisiva para o envoltório de carne, em que a mente se manifesta.

Nesse ponto das explicações, porém, o Minis­tro abanou a cabeça e ajuntou:

— Nossa ação, contudo, está subordinada àlei que nos rege. No problema de nossa irmã, o concurso de nosso plano conseguirá tão somente angariar-lhe reconforto. A moléstia, em razão das provas que lhe assinalam o roteiro pessoal, atingiu insopitável extensão.

— Quer dizer que ela, agora, apenas se habi­lita à morte calma? — indagou Hilário, atencioso.

— Justamente — confirmou o orientador. —Com a cooperação em curso, despertará no corpo desfalecente mais serena e mais confortada. Repe­tindo as excursões até aqui, noite a noite, habi­tuar-se-á, com entendimento superior, à idéia da partida, transmitindo aos familiares resignação e coragem para o transe da separação; aprenderá a contribuir com o seu esforço, no sentido de aliviar-lhes as aflições pela humildade que edificará, dentro de si mesma... pouco a pouco; desligar-se-á da carne enfermiça, acentuando a luz inte­rior da própria consciência, a fim de separar-se do ambiente que lhe é caro, como quem encontra na morte física valiosa liberação para serviço mais enobrecido. E, assim, em algumas semanas, mos­trar-se-á admiràvelmente preparada ante o novo caminho...

Clarêncio silenciara.

O assunto requisitava-me a novas observações.

— Nesse caso — comecei a falar, hesitante.

O Ministro, porém, sorriu compreensivo e ata­lhou, esclarecendo:

— Já sei a tua conclusão. É isso mesmo. A enfermidade longa é uma bênção desconhecida en­tre os homens, constitui precioso curso preparató­rio da alma para a grande libertação. Sem a mo­léstia dilatada, é muito difícil o êxito rápido no trabalho da morte.

Nesse instante, contudo, Zulmira e Odila che­gavam à praia, em sítio não longe de nós.

Clarêncio recomendou-nos atenção.

Rodeamo-las, prestamente, qual se fossem ir­mãs enfermas, sob a nossa guarda.

Nem uma nem outra nos identificavam a pre­sença. Tão pouco pareciam interessadas pelo movi­mento no logradouro.

A primeira esposa de Amaro centralizava o olhar sobre a presa, enquanto que a vítima revelava na expressão facial o intraduzível terror dos que se abeiram do extremo desequilíbrio.

Zulmira ensaiava o gesto de quem se propunha a regressar precipitadamente a casa, mas, contida pela companheira, avançava, entre a aflição e o pavor.

E, repetindo as mesmas acusações que já ou­víramos, Odila martelava o cérebro da outra, reiterando, desapiedada:

— Recorda o crime, infeliz! lembra-te da hor­rível manhã em que te fizeste assassina! onde colocaste meu filho? porque afogaste um inocente?

— Não, não! — gritava a pobrezinha demen­tada — não fui eu! juro que não fui eu! Júlio foi tragado pelas ondas...

— E porque não velaste pela criança que meu marido levianamente confiou às tuas mãos infiéis? acaso, não te acusa a própria consciência? onde situas o senso de mulher? Pagar-me-ás alto preço pelo relaxamento delituoso... Não permitirei que Amaro te ame, alimentarei a antipatia dele contra ti, atormentarei as pessoas que te desejarem so­correr, destruirei a própria casa de que te apos­saste e me pertence!... Impostora! impostora!...

— Sim, sim... — concordava Zulmira, terrifi­cada —, não matei, mas não fiz o que me competia para salvá-lo! Perdoa-me! perdoa-me! prometo em­penhar-me no refazimento da paz de todos... Serei uma escrava de teu marido e restitui-lo-ei aos teus braços; converter-me-ei em serva de tua filhinha, cujos passos orientarei para o bem, mas, por pie­dade, deixa-me viver! Liberta-me! Compadece-te de mim!...

— Nunca! nunca! — bradava a interlocutora, friamente — tua falta é imperdoável. Mataste!

Deves confessar o delito perpetrado, à frente da polícia!... Dobrar-te-ei a cerviz! Serás recolhida à penitenciária, para que te mistures às delinqüentes de tua laia!...

— Não! não! — suplicava Zulmira, com sinais comoventes de angústia.

— Se não aniquilaste meu filho — bradava a outra, cruel —, devolve-o aos meus braços!

Devol­ve-o! devolve-o!

Nesse momento, ambas se achavam à frente de determinada nesga da praia.

Os olhos da pobre obsidiada adquiriram estra­nho fulgor.

— Foi aqui! — rugiu a perseguidora, rudemente — aqui consumaste o sinistro plano de extinção da nossa felicidade...

Qual se fora tangida de secretos impulsos, a segunda mulher de Amaro desprendeu-se dos braços que a constringiam e, penetrando as águas, cla­mava, aflita:

— Júlio! Júlio!...

Odila, no entanto, perturbada e ensandecida, pôs-se-lhe no encalço.

Sentindo-lhe a aproximação, Zulmira rodou so­bre os calcanhares e disparou de volta ao lar.

Acompanhamos as duas, na competição a que se entregavam, sem perdê-las de vista.

Varando a casa, incontinenti, dando a idéia de que o corpo adormecido era poderoso magneto a atraí-la, Zulmira despertou, alagada de suor, con­servando no cérebro de carne a impressão de que vagueara em terrível pesadelo.

Tentou gritar, mas não conseguiu.

Faleciam-lhe as forças em colapso nervoso, insopitável. A dispneia castigava-a com violência, enquanto as coronárias se mostravam intumescidas.

Clarêncio aproximou-se e aplicou-lhe fluidos salutares e repousantes.


Acalmou-se-lhe o coração, vagarosamente, o campo circulatório tornou à feição normal. Foi en­tão que a desventurada senhora conseguiu gemer, clamando por socorro.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

Nenhum comentário: