sábado, 18 de janeiro de 2014

DELICIOSA EXCURSÃO

O velhinho desencarnado demonstrava absoluta indiferença, ante a descrição do nosso orientador, mas, como se a presença da nobre senhora lhe despertasse novo interesse, fitou-a, de olhos súbi­tamente iluminados, e bradou:

— Antonina! Antonina!... Socorre-me. Tenho medo! muito medo!...

A interpelada, que fora do corpo denso se mos­trava muito mais delicada e mais bela, fixou-o, triste, e inquiriu com amargurado semblante:

— Vovô, que fazes?

O ancião curvou-se e implorou:

— Ajuda-me! Todos na família me esquece­ram, com exceção de ti. Não me abandones!... Ele, o meu ferrenho inimigo, me tortura por den­tro. Assemelha-se a um demônio, morando em mi­nha consciência...

Tentava agora enlaçá-la, aflito, mas Clarêncio interferiu, indicando-nos:

— Ouça, amigo! Nossos irmãos prometeram ampará-lo e, decerto, cumprirão a palavra. Nossa abnegada Antonina, no momento, precisa ausen­tar-se, em nossa companhia, por algumas horas.

E abraçando-o, paternal, recomendou:

— Você pode igualmente auxiliá-la. Guarde-lhe a casa, enquanto os meninos repousam. Amanhã, receberá, por sua vez, o socorro de que necessita.

O velho sorriu conformado e aquietou-se.

Deixando-o a sós, na sala estreita, saímos para a noite.

Entrelaçando as mãos e conservando nossas irmãs no circuito fechado de nossas forças, empreendemos a formosa romagem.

Quem na Terra poderá imaginar as deliciosas sensações da alma livre?

Viajando com a rapidez do pensamento, avan­çamos à frente da sombra noturna, largando para trás o deslumbramento da aurora, em colorido e cantante dilúculo...

Atingindo formosa paisagem, banhada de sua­ve luz, em que um parque imponente e acolhedor se distendia, fixei o semblante de nossas compa­nheiras, que se mostravam extáticas e felizes.

Dona Antonina, amparando-se em Clarêncio qual se fora uma filha apoiada nos braços pater­nos, inquiriu, maravilhada:

— Porque não transformar esta excursão em transferência definitiva? Pesa o corpo, à maneira de insuportável cruz de carne, quando conseguimos sentir a Terra, de longe...

— É verdade — concordou a outra irmã, que se sustentava em nós —, porque não nos é dado permanecer, olvidando os pesares e os dissabores do mundo?

— Compreendemos — ajuntou o Ministro, ge­neroso —, compreendemos quanta inquietação pun­ge o espírito reencarnado, mormente quando des­perto para a beleza da vida superior, entretanto, é indispensável saibamos louvar a oportunidade de servir, sem jamais desmerecê-la.

Achamo-nos ainda distantes da redenção total e todos nós, com alternativas mais ou menos longas, devemos abra­çar a luta na carne, de modo a solver com digni­dade nossos velhos compromissos. Somos viajores nos milênios incessantes. Ontem fomos auxiliados, hoje nos cabe auxiliar.

Á medida que avançávamos, ondas de perfume acentuavam-se, em torno de nós, revigorando-nos as energias e induzindo-nos a respirar a longos sorvos.

Flores de contextura delicada pendiam abun­dantemente de árvores vigorosas, embalsamando as leves virações que sussurravam encantadoras me­lodias...

Como se trouxesse agora todo o busto engri­naldado de luz, Clarêncio sorria, bondoso.

Emudecera-se-lhe a palavra.

Sentiamo-nos todos magnetizados e enterne­cidos ante a beleza do quadro que nos prendia a admiração.

Antonina, porém, como se estivesse irradiando insopitável curiosidade, mesclada de alegria, voltou a exclamar:

— Ah! se morrêssemos hoje!... se a carne não nos pesasse mais!...

O Ministro, contudo, imprimindo mais grave entonação à voz, mas sem perder a brandura que lhe era peculiar, considerou, de imediato:

— Se hoje abandonassem o veículo de maté­ria densa, quem diz que seriam felizes? Quem de nós obterá a suprema ventura, sem a perfeita su­blimação pessoal?

E, fitando Antonina com bondade misturada de compaixão, observou:

— Agora, vocês visitarão filhinhos abençoados que a morte lhes arrebatou temporàriamente ao convívio terrestre. Vocês se sentem como que num palácio dourado, em pleno paraíso de amor, mas, e os filhinhos que ficam? Haverá Céu sem a pre­sença daqueles que amamos? Teremos paz sem alegria para os que moram em nosso coração? Imaginemos que as algemas do cárcere físico se partissem agora... O atormentado lar humano cres­ceria de vulto na saudade que as tomaria de as­salto... A lembrança dos filhos aprisionados no Planeta acorrentá-las-ia ao mundo carnal, à maneira de forte raiz retendo a árvore no solo escuro. Os rogos e os gemidos, as lutas e as provas dos rebentos menos felizes da existência lhes falariam ao espírito mais imperiosamente que os cânticos de bem-aventurança dos filhos afortunados e, na­turalmente, desceriam do Céu para a Terra, pre­ferindo a posição de angustiadas servas invisíveis, trocando a resplendente glória da liberdade pelos dolorosos padecimentos da prisão, de vez que a ventura maior de quem ama reside em dar de si mesmo, a favor das criaturas amadas...

As duas mulheres ouviram as sensatas ponde­rações sem dizer palavra.

Finda a pausa ligeira, o instrutor continuou:

— Somos devedores uns dos outros!... Laços mil nos jungem os corações. Por enquanto, não há paraíso perfeito para quem volta da Terra, tanto quanto não existe purgatório integral para quem regressa ao humano sorvedouro! O amor é a for­ça divina, alimentando-nos em todos os setores da vida e o nosso melhor patrimônio é o trabalho com que nos compete ajudar-nos mutuamente.

Na paisagem banhada de luz, experimentei mais alta veneração pela Natureza, que, em todas as es­feras, é sempre um livro revelador da Eterna Sa­bedoria...

Nossas irmãs, tocadas por júbilo inexprimível, afiguravam-se-me formosas madonas de sonho, re­pentinamente vivificadas, diante de nós.

É pelo trabalho — prosseguiu o orienta­dor — que nos despojamos, pouco a pouco, de nossas imperfeições. A Terra, em sua velha ex­pressão física, não é senão energia condensada em época imemorial, agitada e transformada pelo tra­balho incessante, e nós, as criaturas de Deus, nos mais diversos degraus da escada evolutiva, apri­moramos faculdades e crescemos em conhecimento e sublimação, através do serviço... O verme, ar­rastando-se, trabalha em benefício, do solo e de si mesmo; o vegetal, respirando e frutescendo, ajuda a atmosfera e auxilia-se. O animal, em luta perene, é útil à gleba em que se desenvolve, adqui­rindo experiências que lhe são valiosas, e nossa alma, em constantes peregrinações, através de for­mas variadas, conquista os valores indispensáveis à sublime ascensão... Somos filhos da eternidade, em movimentação para a glória da verdadeira vida e só pelo trabalho, ajustado à Lei Divina, alcan­çaremos o real objetivo de nossa marcha!

Antonina, que parecia mais acordada que a sua companheira, para a contemplação do excelso quadro que nos circundava, perguntou, com enlevo:

- Porque não guardamos a viva recordação de nossas existências anteriores? não seria bendita felicidade o reencontro consciente com aqueles que mais amamos?...

— Sim, sim... — confirmava Clarêncio, en­quanto nossa deliciosa excursão prosseguia, céle­re — mas, na condição espiritual em que ainda nos situamos, não sabemos orientar os nossos de­sejos para o melhor. Nosso amor ainda é insigni­ficante migalha de luz, sepultada nas trevas do nosso egoísmo, qual ouro que se acolhe no chão, em porções infinitesimais, no corpo gigantesco da escória. Assim como as fibras do cérebro são as últimas a se consolidarem no veículo físico em que encarnamos na Terra, a memória perfeita éo derradeiro altar que instalamos, em definitivo, no templo de nossa alma, que, no Planeta, ainda se encontra em fases iniciais de desenvolvimento. É por isso que nossas recordações são fragmentá­rias... Todavia, de existência a existência, de ascensão em ascensão, nossa memória gradativamente converte-se em visão imperecível, a serviço de nos­so espírito imortal...

— Mas se pudéssemos reconhecer no mundo os nossos antigos afetos, se pudéssemos rever os semblantes amigos de outras eras, identificando­-os... — aventurou Antonína, reverente.

— Retomar o contacto com os melhores, seria recuperar igualmente os piores — atalhou Clarêncio, bondoso — e, indiscutivelmente, não possuimos até agora o amor equilibrado e puro, que se con­sagra aos desígnios superiores, sem paixão. Ainda não sabemos querer sem desprezar, amparar sem desservir. Nossa afetividade, por enquanto, padece deploráveis inclinações. Sem o esquecimento tran­sitório, não saberíamos receber no coração o adver­sário de ontem para regenerar-nos, regenerando-o. A Lei é sábia. De qualquer modo, porém, não olvi­demos que nosso espírito assinala todos os passos da jornada que lhe é própria, arquivando em si mesmo todos os lances da vida, para formar com eles o mapa do destino, de acordo com os princípios de causa e efeito que nos governam a estrada, mas somente mais tarde, quando o amor e a sabedoria sublimarem a química dos nossos pensamentos, éque conquistaremos a soberana serenidade, capaz de abranger o pretérito em sua feição total...

O Ministro fêz ligeiro intervalo, sorriu pater­nalmente para nós e rematou:

— A Lei, contudo, é invariàvelmente a Lei. Viveremos em qualquer parte, com os resultados de nossas ações, assim como a árvore, em qualquer trato do solo, produzirá conforme a espécie a que se subordina.

O firmamento parecia responder às sugestões da palestra admirável.

Bandos de aves mansas pousavam na ramaria que brilhava não longe de nós.

O Sol apresentava perceptíveis raios diferen­tes, até agora desconhecidos à apreciação comum na Terra, provocando indefiníveis combinações de cor e luz.

Por abençoada e colorida colmeia de amor, har­monioso casario surgiu ao nosso olhar.

Centenas de gárrulas crianças brincavam entre fontes e flores de maravilhoso jardim.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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