domingo, 26 de janeiro de 2014

NOVAS EXPERIÊNCIAS

Noite fechada e alta, tornamos ao domicílio do enfermeiro, seguidos de Clarêncio, que funcionava, como sempre, junto de nós, por mentor diligente e amigo.

Mário Silva, estirado nos lençóis, debalde pro­curava dormir.

O sonho da véspera castigava-lhe o pensamento.

Ruminando as impressões da manhã, refletia de si para consigo: — seria realmente Amaro, o rival, quem lhe surgira na forma de um criminoso? e aquela mulher chorosa e acabrunhada seria, por­ventura, Zulmira, a companheira de infância, que ainda lhe feria as recordações? onde o motivo de semelhante reencontro? Teimava em afastar para longe as reminiscências da mocidade... por isso mesmo, não acreditava estivesse nele próprio a cau­sa do estranho pesadelo... Permanecia convicto de que alguém o chamara, nitidamente, pronunciando palavras que o constrangiam a atender... Estaria Zulmira em apuros? E esta, acaso se recordaria dele? E se as suas conjecturas expressassem a ver­dade, teria o direito de reaproximar-se? Não ima­ginava isso possível... A chaga do brio retalhado ainda lhe sangrava no coração. Não seria justo acudi-la, nem mesmo a pretexto de socorrer. Co­nhecia-lhe o esposo de relance, mas o suficiente para detestá-lo, com todas as reservas de ódio de que se sentia capaz. Ainda mesmo que a mulher, outrora querida, lhe suplicasse assistência, cabia-lhe ser surdo aos seus rogos...

Hipóteses inquietantes e perguntas sem respos­ta lhe assediavam o cérebro toldado de apreensão e rancor.

A antiga aversão pelo rival preponderava, do­minando-o.

Porque não voltar ao sonho da noite anterior, de modo a tentar uma solução?

A figura de Amaro crescia-lhe no campo mental.

«Se as almas podiam efetivamente reencon­trar-se, fora do corpo — prosseguia divagando —, decerto conseguiria rever o adversário e revidar... Se fora invocado em sonho, era lícito invocar quem quisesse... Chamaria o renegado esposo de Zul­mira a explicar-se. Concentraria nele o poder do pensamento. Buscá-lo-ia onde estivesse. »

O Ministro contemplava-o, compadecido.

Valendo-se dos minutos para ensinar-nos algo proveitoso, observou:

— A paixão cega sempre. Nossa vida mental é a nossa vida verdadeira e, por isso, quando a pai­xão nos ocupa a fortaleza íntima, nada vemos e nada registramos senão a própria perturbação.

Em seguida, aplicou passes balsamizantes so­bre o rapaz, que se virava, desajustado, no leito - Mário, qual se houvera sorvido brando anes­tésico, relaxou os nervos e descansou o comboio físico, mas, ressurgindo em nosso plano, começou a extravasar os sentimentos que lhe senhoreavam o espírito.

Não nos assinalava a presença, continuando, porém, sob a nossa observação, em seus mínimos movimentos.

Espantadiço e tateante, vagueou pelos ângulos do quarto no veículo perispirítico, extremamente condensado.

Todavia, pouco a pouco, esgazearam-se-lhe os olhos, dando-nos a idéia de quem se detinha em aflitivos quadros íntimos.

Anotando-nos o assombro silencioso, o instru­tor socorreu-nos, explicando:

— Qual acontece ao nosso amigo Leonardo, o novo companheiro padece angustioso complexo de fixação. Embora tenha o seu caso particular, algo suavizado pelas lutas da carne, que, por vezes, cons­tituem abençoado entretenimento, não consegue di­luir a obcecante recordação do inimigo. A mágoa é-lhe inquietante ferida mental. Enquanto se dis­trai nas tarefas comuns, alheia-se, de alguma sor­te, ao tormento oculto que transporta consigo, mas, em se vendo espiritualmente a sós, dá curso ao ódio coagulado, desde muito, no coração. Obser­vemo-lo!

Mário desceu para a rua, à maneira de louco, e, inalando o ar refrescante da noite, forneceu a impressão de quem se revigorava, de súbito, pas­sando a gritar, com voz estridente:

- Amaro, ladrão! Amaro, usurpador! apare­ce! Se tens dignidade, afronta-me a vingança!... Não tremerei!... Onde ocultaste a mulher que eu amo? Responde, responde!...

Silva caminhava semi-ébrio, sem direção, con­tudo, arremessava as palavras no ar, com veemên­cia e segurança.

Havíamos dobrado esquinas diversas e eis que, quando menos esperávamos, surge alguém ao en­contro dele, em plena via pública.

Copiando o impulso do ferro atraído pelo ímã, o esposo de Zulmira, em seu corpo sutil, corres­pondia ao chamado estranho do inimigo, desligado parcialmente da carne.

Defrontaram-se, a princípio, altivamente, en­tretanto, logo após, com as maneiras do homem mais educado, Amaro esboçou delicado recuo, re­velando-se preocupado em evitar conflitos e abor­recimentos.

O enfermeiro, porém, de ânimo revel, bradou, desconcertante:
— Não te acovardes, bandido! Não fujas!... Temos contas a ajustar!...

O ferroviário, contudo, afastava-se, rápido.

O adversário, no entanto, sem arrefecer no ímpeto, seguia-o, inflexível, longe de renunciar ao escuro propósito de agressão.

Acompanhávamos ambos, quarteirão a quar­teirão, até que esbarramos à entrada do abrigo doméstico que já conhecíamos, onde Amaro dispôs-se ao ajuste pacífico.

Demonstrando-se interessado em defender a tranquilidade familiar, o dono da casa estacou à porta, aguardando o provocador.

— Então — bradou Silva, exasperado —, é aqui o ninho das serpentes?

Levantando os punhos contra o rival humil­de, prosseguiu, rixento:

— Pagar-me-ás muito caro a intromissão! In­fame enganador, onde puseste a mulher que era minha felicidade e minha vida? Quebraste-me os sonhos, aniquilaste-me os ideais!... Homem terrí­vel, que fizeste de mim? Sou apenas máquina de trabalho, sem fé e sem esperança!...

— Eu não sabia, não sabia!... — alegou Ama­ro, desapontado — nunca tive a intenção de ofen­der-te!

— Maldito! como sabes dissimular! onde está Zulmira? devo exterminar-te para restituir-me a independência?

E afrontado pela serenidade do outro, o enfer­meiro acentuou:

— Não me reconheces, acaso?

— Sim, reconheço-te — falou o interlocutor num suspiro —, és Mário Silva, pessoa a quem devoto consideração e respeito.

— Consideração e respeito? que deslavado fin­gimento! onde a prova de apreço, se me arrancaste a noiva, engodando-a com mentirosas promessas?

— Somente soube de tua velha afeição por ela quando meus compromissos no matrimônio não admitiam qualquer recuo. Se alguém, todavia, me houvesse comunicado lealmente quanto se desen­rolava, em torno de minha preferência, teria renun­ciado em teu favor. Desejaria realmente servir-te, entretanto, agora...

— Hipócrita! — tornou Mário, enfurecido —não creio em tua palavra de lobo disfarçado. Rou­baste-me a única felicidade que eu esperava do mundo! a única felicidade que era minha!...

Amaro fixou triste sorriso e obtemperou:

— E acreditas que eu seja feliz? Admites no casamento apenas a exaltação dos sentidos inferio­res? Crês que o homem consorciado deva encon­trar na mulher simplesmente uma escrava?

Anuo em Zulmira a companheira e a irmã que me cabe proteger. Nem ela e nem eu encontramos na expe­riência conjugal a ventura das afeições cor-de-rosa, em que o desejo contentado é como a flor que mor­re num dia... Temos padecido muito, Mário. Não ignoras que me casei em segundas núpcias. Zul­mira, por isso mesmo, não terá recolhido em mim a perfeita alegria que lhe seria lícito esperar. Nos­sa aproximação começou por uma série de desajus­tes, que culminaram com a morte do meu caçula, num terrível desastre... Desde então, nossa casa é um espinheiro de sofrimento... Minha esposa adoeceu gravemente e eu mesmo, até agora, con­tinuo agoniado e desfalecente... Saberias, porven­tura, o que seja a desdita de um pai que chora sem lágrimas, mortalmente ferido? Se dívidas pos­suo para com a Divina Providência, podes acredi­tar que não tenho amargado pouco, a fim de ressarci-las... A morte para mim não passaria de bênção libertadora. Como podes observar, não me vejo em condições de aceitar-te o desafio! Estou dilacerado e, mais que dilacerado, vencido...

Com enternecedora inflexão de súplica, acen­tuou:

— Se ainda consagras amor à criatura que desposei, ajuda-nos com a tua compreensão!... Se te fiz algum mal, inconscientemente, perdoa-me! Perdoa-me pelas angústias da minha existência de condenado a horríveis provas morais!...

Mário Silva, com espanto nosso, retribuiu com escandalosa gargalhada.

— Desculpar? Nunca! — exclamou jactancio­so. — Pelo tom da conversa, concluo que a justiça começou a expressar-se, devidamente, mas abreviá­-la-ei com as minhas próprias mãos... Meu des­forço é certo, meu ódio é inexorável!...

Amaro não mais respondeu.

Vimo-lo curvar a cabeça em oração fervorosa. Suaves irradiações de esmeraldina luz escapavam-lhe da fronte. As palavras inarticuladas de que se servia, para implorar socorro, alcançavam-nos o espírito, qual se fossem ondas caloríferas e harmo­niosas de humildade e confiança.

Silva, incapaz de sensibilizar-se, ante a rendi­ção comovente, prosseguia gritando:

— Porque silencias, covarde? Fala, fala! Ex­plica-te!... Reage! Dominaste Zulmira, mas não me dobrarás um milímetro!... Criminosos de tua laia não merecem compaixão!...

Nessa altura do diálogo, Clarêncio convocou-nos, paternal:

— Respondamos à prece de Amaro, com o auxílio fraterno.

Arrastados pela simpatia e pela emoção, acom­panhamos o nosso orientador, sem hesitar.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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