sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

CONSCIÊNCIA EM DESEQUILÍBRIO

Consoante as recomendações que havíamos recebido, aguardamos dona Antonina, no estreito recinto em que se processara o culto familiar.

Agora, conseguíamos reparar o ancião desen­carnado com mais atenção. Conservando integrais remanescentes da vida física, abatido e trêmulo, parecia inquieto, dementado...

Tentámos debalde uma aproximação.

Não nos via.

Lembrei ao meu companheiro que poderíamos densificar o nosso veículo, pela concentração da vontade, e apressamo-nos na providência.

Em momentos breves, fornecendo a impressão de recém-chegados, atraímos-lhe o interesse.

O velhinho precipitou-se para nós, exclamando:

— São oficiais ou praças? Estão pró ou con­tra?

Aquele olhar esgazeado era efetivamente o de um louco.

Hilário e eu trocamos impressões de curiosi­dade e espanto.

E antes que nos pronunciássemos, começou a chorar, convulsivamente, acentuando:

— Quem trouxe aqui a idéia de perdoar? em que ponto me situaria na questão? devo perdoar ou ser perdoado? Não entendo a necessidade de discussão em torno de um assunto como esse entre fraca mulher e três crianças... Comentários dessa natureza devem ser reservados para pessoas afli­tas como eu, que trazem um vulcão no centro do crãnio...

Assim dizendo, alteraram-se-lhe as feições fi­sionômicas.

Afigurou-se-nos mais distante da realidade, mais inconsciente.

Gritando quase, continuou:

— Tudo teria sido modificado se me houves­sem facultado o encontro com o novo Generalíssi­mo... Sua Alteza compreender-me-ia a situação. Era propósito do Marechal requisitar-me para seu serviço exclusivo, entretanto, por influência do meu miserável perseguidor, sofri transferência injusta...

Nosso inesperado amigo vasculhou com os olhos os recantos da sala, qual se temesse a presença de alguma testemunha invisível, e prosseguiu:

— Ouçam, porém, o que lhes digo! Ele não somente pretendia afastar-me dos favores do Ma­rechal doente, mas planejava furtar-me a mulher... Lola Ibarruri! como não haveria de querê-la com a paixão que me inspirou? Porque teria eu de se­guir para Fecho dos Morros? O intento de me prejudicarem era evidente. Sem dúvida, fui cons­trangido a sair, mas não fui além de Tacuaral. O General Polidoro não me abandonaria... Devia re­gressar a Luque e regressei. .. O infame Esteves, contudo, agira sem descansar... Além de assaltar-me os direitos de enfermeiro no Quartel General, desviara a atenção de Lola... A formosa Ibarruri não mais me pertencia. Entregara-se ao amigo desleal... Nossa pequena chácara de laranjeiras e nosso jardim estavam esquecidos... Quem disse que não me sacrifiquei na aquisição da encantadora casinha, por mim confiada à pérfida mulher?

Du­rante um mês longo e terrível, suspirei pelo re­torno aos carinhos dela... Quando tornei ao lar, naquela estrelada noite de maio, encontrei-a nos braços do traidor... Lola tentou desculpar-se, mas surpreendi-os juntos... Quis vingar-me, de imedia­to, espetando-o com meu punhal, todavia, as tropas deixariam a cidade, daí a três dias, e o meu ini­migo, que se esgueirara na sombra, ante a minha aproximação deu-se pressa em viajar, a serviço, no rumo de Itauguá... O ódio passou a dominar­-me, enceguecendo-me... Encontrá-lo-ia em algu­ma parte, abraçá-lo-ia com a mesma cordialidade fingida com que me abraçara pela primeira vez e arrancar-lhe-ia a vida... Assim fiz... Aparentei ignorar a realidade e busquei-o, sorrindo... e, sor­rindo, envenenei-o... Creiam, contudo, que somen­te me abalancei a semelhante ato, porque ele era impudente, libertino, cruel... Assassinar-me-ia, se eu não tivesse o arrojo de liquidá-lo...

Fêz breve pausa e, em seguida, ajoelhando dian­te de nós, passou a clamar, de novo, em alta voz:

— Oh!... para mim, estou certo de que pra­tiquei a justiça, mas este homem realmente não me abandona! Lutei tanto!... Casei-me e organizei grande família!... Devotei-me à religião, desfrutei os benefícios dos santos sacramentos e admiti que tudo estivesse amplamente solucionado, entretanto, depois de retirar-me do corpo físico sob a imposi­ção da velhice e da enfermidade, longe de encontrar o céu que parece cada vez mais distante de mim, reconheço que este homem continua a per­seguir-me por dentro!... Faz muitos anos que me despedi dos ossos fatigados e perambulo, aflito e infeliz, carregando o inferno, dentro de mim!... A princípio, procurei o sepulcro, na esperança de soerguer meus restos e, escondendo-me neles, es­quecer... esquecer... Compreendendo, porém, que meu desejo era de todo frustrado, fugi para sem­pre do lugar que me asila os despojos e devoro ruas e praças, buscando autoridades que me so­corram...

Depois de passar as mãos pelo rosto, enxu­gando as lágrimas, continuou:

— Ó senhores, por quem são!... ainda mes­mo que o meu erro fosse tão clamoroso assim, tanto tempo de convívio com este monstro a fi­tar-me, imperturbável, não bastaria à expiação que me compete ao resgate? Se eu confessasse o crime e me demorasse por menos tempo no cárcere, não estaria redimido, diante dos tribunais?

Sentindo que algo nos caberia dizer à guisa de consolo, afaguei-lhe a cabeça branca e falei,

tentando ser gentil:

— Acalme-se, meu irmão! quem de nós não terá desacertado no caminho da vida? sua dor não é única... Também nós trazemos o espírito pejado de aflitivas recordações. As lágrimas de desespe­ração desajudam a alma...

Pelas citações que ouvíramos, percebi que o nosso interlocutor se reportava ao tempo da Guer­ra do Paraguai e, buscando penetrar o labirinto de suas palavras que estabeleciam ligação do pas­sado com o presente, indaguei:

— A que novo Generalíssimo se refere?

— Ah! ignoram?

E dando-nos a idéia de quem vivia profunda­mente arraigado a particularidades do pretérito, aduziu:

— Recordo-me com precisão... Sim, a procla­mação dele era de 16 de abril... O Príncipe D. Gastão de Orleães era o novo comandante em che­fe, mas muito me pesava o afastamento do Marechal...

— Qual deles? — perguntei, reavivando-lhe a memória.

— O Marechal Guilherme Xavier de Souza. Era meu amigo, meu protetor... Doente, cansado, precisava de mim... contudo, afastaram-me dele... Esteves, o cão infiel...

Nesse instante, porém, a voz extinguiu-se-lhe na garganta. Esbugalharam-se-lhe, os olhos e, como se estivesse atenazado no íntimo por forças terrí­veis, insondáveis à nossa observação, começou a queixar-se, desesperado:

— Ah! não posso continuar!... Ele, novamen­te ele, a crescer dentro de mim! Observa-me com asco e ainda lhe ouço as últimas palavras no es­tertor da morte... Não! Não! — bradava ele, ago­ra, com evidentes sinais de angústia — hei-de li­bertar-me! hei-de libertar-me! Tenho fé!.

Comovidamente, acerquei-me do pobrezinho e considerei:

- Sim, meu amigo, a fé representa o mila­groso salva-vidas de todos os náufragos. Você tem orado? tem pedido a Jesus amparo e assistência?

— Sim, sim..

- E ainda não lhe chegou qualquer sinal de socorro celeste?

O infortunado centralizou em mim o olhar in­quieto e informou:

— Há alguns dias, fui à Igreja do Rosário, recordando como sempre a visita que fiz até lá, na véspera de minha partida para a guerra, e tanto rezei que tive a felicidade de ver o Marechal, que me apareceu, de súbito... Estava mais moço e in­compreensivelmente refeito... Roguei-lhe proteção ao que me respondeu, informando que o meu caso seria tomado em apreço, que eu descansasse, pois ainda que os nossos erros sejam grandes, maior éa compaixão de Deus que nunca nos desampara...

E, exibindo um gesto de profundo abatimento, acrescentou:

— Mas, até agora, não tive o menor sinal de renovação do caminho...

Acariciei-lhe a nevada cabeça e considerei, co­movidamente:

— Esteja convencido, porém, de que a bon­dade de Jesus não nos faltará.

— Prometa ajudar-me! compadeça-se de mim!

gritou o infeliz.

De coração, íntimamente tocado por semelhan­te apelo, hipotequei-lhe a decisão de colaborar em sua paz e soerguimento.

Quando o infortunado ancião procurava abra­çar-me, Clarêncio chegou, guiando a outra pupila que nos acompanharia na excursão.

Simpática e humilde, após cumprimentar-nos, manteve-se a distância, O mentor, num átimo, com­preendeu o que se passava. Vimo-lo concentrar-se por momentos, densificando-se para auxiliar com mais presteza.

Saudado pelo velhinho, afagou-lhe a fronte e avisou-nos:

— Permanece dementado. A mente dele fi­xou-se em recordações que o obcecam.

Mais experiente que nós outros, guardou-o nos braços com paternal carinho, conquistando-lhe a confiança e inquiriu:

— Que procura, meu irmão?

— Venho suplicar o socorro de Antonina, mi­nha neta. É a única pessoa que se lembra de mim com amor... Dentre os numerosos membros de mi­nha família, só ela me oferece asilo na oração...

E, porque reiniciasse as referências lamurio­sas, o Ministro colocou a destra sobre a cabeça de nosso interlocutor, como a sondar-lhe o íntimo em minuciosa perquirição e, em seguida, informou:

— Temos aqui nosso irmão Leonardo Pires, desencarnado há cerca de vinte anos... Quando jovem, foi empregado do Marechal Guilherme Xa­vier de Souza e hoje conserva a mente detida num crime de envenenamento em que se envolveu, quan­do integrava as forças brasileiras acampadas em Piraju, no Paraguai. Podemos conhecer o delito, em suas particularidades, na tela das recordações que o atormentam... É um domingo de festa em campanha... 11 de julho de 1869... A missa é celebrada em pleno campo por um frade capuchi­nho... O Conde d’Eu, com a luzida oficialidade do seu Quartel General, está presente... Nosso ami­go, muito moço ainda, aparece no corpo da infan­taria. Não se mostra, porém, interessado nas graves advertências do sacerdote, no ato religioso, nem no apelo ardente e patriótico do Generalíssimo, que pronuncia brilhante e inspirada alocução para os convidados... Fita com impertinência um com­panheiro recém-chegado de Itauguá, enfermeiro em serviços especiais... É José Esteves, irrequieto brasileiro de olhos escuros e inteligentes, de gar­boso porte, com os seus trinta anos bem feitos...

Partilha com o nosso amigo o afeto de linda mu­lher desquitada, que abandonou o marido e um filho pelo prazer da aventura... Pires, o irmão que observamos, inconformado com os favores da criatura amada para com o patrício que ele odeia, finge ignorar-lhe a situação e insinua-se maneiroso e gentil... Terminada a festa, convida Esteves para refeição mais íntima... E, juntos, comentam entusiásticos as noitadas do Rio, ansiosos pelo re­torno às seduções da retaguarda... Esteves entro­sa-se com as impressões de Leonardo, confia nele e conversa, loquaz, até que o vingativo colega, na taverna improvisada, lhe oferece um copo de vi­nho com o veneno fatal... O companheiro bebe, experimenta estranhas vertigens e morre prague­jando... O acontecimento é recebido com admira­ção... Um médico argentino é chamado a opinar e verifica o envenenamento, contudo, as autoridades julgam o silêncio mais acertado... As tropas de­veriam seguir rumo a Paraguarí e o caso é encer­rado sem maior investigação... Leonardo acompa­nha o Exército para a vanguarda e tenta esquecer o ocorrido... Convive ainda com a requestada mu­lher, por mais algum tempo, mas, de regresso à terra natal, desinteressa-se dela e casa-se no Bra­sil, deixando vários descendentes... Desencarna, valetudinário; todavia, no leito de morte, reconhece que a lembrança do crime lhe castiga o mundo in­terior... Olvida quase todos os demais episódios da existência para centralizar-se apenas nesse... José Esteves já reencarnou, demorando-se agora em outros setores de luta, mas Leonardo Pires vive com a imagem do assassinado que se revitaliza, cada dia, na memória dele, ao influxo das suges­tões da própria consciência que se considera culpa­da... Como vemos, é a Lei de causa e efeito a cumprir-se, natural...

Nesse instante, porém, Antonina, em seu veícu­lo sutil, surgiu à porta da câmara em que o seu corpo dormia, vindo ao nosso encontro.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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