terça-feira, 28 de janeiro de 2014

CONFISSÃO

Amaro, cujo semblante exibia os sinais de re­novação a que nos reportamos, começou a dizer, comovido:

— Sim, recordo-me perfeitamente... A madru­gada do Ano Bom de 1869 ficou marcada para sempre em nossa memória... Abordaríamos As­sunção, procedendo de Santo Antônio, em angustio­sa expectativa... A curiosidade abafava a exaustão... Lembro-me de que, antecedendo-se ao desembar­que, Esteves procurou-nos, solicitando-nos o con­curso fraterno para a solução de um problema que reputava importante para o futuro que o aguar­dava... Éramos três amigos inseparáveis na ca­serna e achávamo-nos os três juntos... Ele, Júlio e eu... Na incerteza das ocorrências que nos espe­ravam, pedia-nos, na hipótese de perecer em com­bate, notificar sua morte à jovem Lina Flores, que conhecera, dias antes, em Villeta... Referiu-se, en­tusiástico, ao amor que os ligava e aos projetos que formavam, considerando o porvir... Preocu­pados com a aflição do companheiro, reconforta­mo-lo com palavras de compreensão e esperança, colocando-nos em guarda... A capital paraguaia, porém, revelava-se fatigada e desprevenida... Ja­mais olvidarei a gritaria dos nossos, triunfantes, em se vendo seguros sobre a presa, criando afliti­vos problemas para as autoridades... Revejo ainda a fisionomia risonha de Esteves, quando se reconheceu são e salvo... Em breve, comunicava-nos o consórcio. Ninguém realmente podia casar-se em campanha, mas o enlace efetuou-se às ocultas, sob a bênção de um sacerdote e com a tolerância dos dirigentes da ocupação, atendendo-se à circunstân­cia de que a noiva era uma pobre menina brasileira, desde muito aprisionada...

Amaro fêz pequena pausa, recobrando energias e continuou:

— Recordo-me de que Júlio e eu fomos em visita ao lar de Esteves, pela primeira vez, em fevereiro do mesmo ano, contudo, colocados à frente de Lina, ambos nos sentimos incompreensivelmente ligados àquela jovem bela e simples, cuja presença exerceu, de imediato, sobre nós, intraduzível atra­ção... Guardei comigo a surpresa que me possuía, mas Júlio, impulsivo e irrequieto, veio a mim ex­travasando o coração... A esposa de Esteves do­minara-lhe a mente, de súbito... Se pudesse ha­ver chegado, antes do companheiro — acentuava enamorado —, não lhe cederia o lugar... Susten­tava a impressão de que Lina já lhe havia surgido em sonhos... E, desse modo, várias vezes repetiu confidências que me tocavam as fibras mais ínti­mas. Anotando-lhe o estado d'alma e reconhecendo o direito de Esteves sobre a mulher que despo­sara, tentei retrair-me... Calquei o sentimento e procurei o olvido necessário... A paixão de Júlio era demasiado forte para resignar-se. Insinuou-se junto à recém-casada, cobriu-a de gentilezas e, pro­vàvelmente, quem sabe? nas vicissitudes da guerra e quase criança para guardar-se, como era preciso, nas responsabilidades do casamento, Lina envol­veu-se nas atenções do rapaz, fazendo-lhe concessões... Recordo-me do dia em que Esteves me pro­curou, desolado, comentando o golpe que recebera... Chorou debruçado nos meus ombros. Desejava de­saparecer, aniquilar-se... Fiz-lhe observar, porém, a inoportunidade de qualquer violência... Enfer­meiro bem conceituado e protegido do Conselheiro Silva Paranhos, nosso embaixador em missão extraordinária, junto às Repúblicas do Prata, não lhe seria difícil a retirada de Assunção... Assim aconteceu. Esteves afastou-se, primeiramente rio abaixo, na direção de Villeta, de onde havia tra­zido a esposa e onde se achavam, retardados, al­guns camaradas enfermos, aos quais prestaria as­sistência... Nada mais soube dele, a não ser que havia morrido misteriosamente em Piraju...

Evidenciando enorme padecimento moral, dian­te daquelas evocações, Silva estremeceu e, apro­veitando o intervalo que se fizera, bradou, ago­niado:

— E a tua participação no infortúnio de minha casa? quem me convencerá de que também não te achavas de parceria com Júlio, na destruição de minha felicidade? Infames!..

Clarêncio, afetuoso, acomodou o enfermeiro irritado, recomendando-lhe esperar a narração, até o fim.

Amaro não perdera a calma.

Assinalou a objurgatória do adversário, fixan­do triste sorriso, e continuou:

— Sim, minha confissão deve ser exata e com­pleta... Entendendo que Lina e Júlio se haviam ajustado para a vida comum, tentei distanciar-me... Temia por mim mesmo. Lina, no entanto, como que me registrava a inclinação imanifesta... Dei­tava-me olhares que me acordavam, simultâneamente, para a alegria e para a dor. Queria aproximar-me e fugir dela, ao mesmo tempo... A princípio, tentei evitá-la; contudo, o afastamento do Mar­quês de Caxias deixava as tropas com larga pro­visão de tempo para diversões... Instado talvez pela companheira, Júlio constrangia-me a frequen­tar-lhe a casa. O jogo alegre e o chá saboroso reuniam-nos os três, noite a noite... Amedron­tado, ante o sentimento que a moça despertava em meu coração, não somente porque não devia perturbar-lhe a harmonia doméstica, mas também porque possuia uma noiva no Brasil, busquei isolar-me, de novo... Reparando, todavia, o assédio de Lina, resolvi asilar-me no trabalho mais intenso e consegui a designação para servir na vigilância noturna do Palacete Resquin, onde a ocupação concentrava todos os assuntos e documentos de interesse do nosso País... Ela, entretanto, não desistiu do propósito de que se animava. Certa noite, procurou-me, disfarçada em mulher do povo... A sós comigo, confessou-se... Declarava-se ator­mentada, aflita... Sentira-se amada por Esteves e via-se ardentemente querida por Júlio, mas não pudera interessar-se pela felicidade junto deles, odiando-os por fim...

Amaro confiou-se a longa pausa e continuou:

— Quem poderá explicar os enigmas do cora­ção humano? quem possuirá bastante visão para surpreender os caminhos da alma? Incapaz de do­minar-me, cometi a falta de assumir um compro­misso espiritual que não me competia... Lina agar­rou-se ao meu afeto com o vigor da hera numa construção sem defesa... E foi assim que, em cer­ta manhã de maio, meu companheiro encontrou-nos juntos... Desesperado, Júlio ingeriu grande quan­tidade de corrosivo, mas, amparado suficientemen­te, foi salvo... Debalde, porém, submeteu-se ao tratamento na caserna. Adquiriu estranhos pade­cimentos da garganta e do esôfago e, não sabendo como suportar as provações físicas e morais, ar­rastou-se, um dia, até às águas do Paraguai, su­pondo encontrar na morte a paz que procurava... Experimentando pesados remorsos, por minha vez perdi a afeição que me algemava à mulher que nos atraira e infelicitara e fugi dela, fugi incorporan­do-me às tropas que combateriam os derradeiros remanescentes de Solano López, na Cordilheira... Prometi-lhe a volta, todavia, terminada a luta, tor­nei à pátria por outros caminhos, decidido a ja­mais reencontrá-la...

Amaro, mais comovido, passou a destra pelo rosto e prosseguiu, depois de breve pausa:

— Dez anos correram, apressados... Nova­mente no Rio, casei-me e fui feliz... Numa noite de chuva forte, minha esposa e eu tornávamos do teatro, quando os cavalos em disparada colheram pobre mulher embriagada na via pública... O co­cheiro sofreou os animais e desci a socorrê-la... E enquanto minha companheira continuava o tra­jeto para a casa, procurei internar a mísera cria­tura para a assistência imediata... Guardas e populares auxiliaram-me a empresa, mas com ines­quecível assombro, quando a mulher foi recolhida ao leito, de ventre rasgado a esvair-se em sangue, nela identifiquei Lina Flores... Por dois dias lutou contra a morte... A infeliz reconheceu-me, rela­cionou as desditas que atravessara, desde que se viu sózinha no Paraguai, esclareceu que viera ao Rio à minha procura e emocionou-me com a nar­ração do drama angustioso em que vivia, tentando a recuperação da felicidade que perdera para sem­pre... Morreu revoltada e sofredora, amaldiçoan­do o mundo e as criaturas...

Amaro interrompeu-se, titubeante.

Mário Silva, estupefato, fixava-o, entre o de­sespero e o pavor.

Notava-se que o ferroviário esforçava-se, em vão, para reaver novas faixas da memória.

Nosso instrutor, contudo, afagou-lhe a fronte, envolvendo-o em renovadas forças magnéticas, e perguntou:

— Onde voltaste a vê-la?

O interpelado esboçou o sorriso de quem reco­lhera a resposta em si mesmo e informou:

— Ah! sim... reencontrei-a na vida espiritual. Achava-se unida a Júlio em aflitivas condições de sofrimento depurador... Compreendi a extensão de meu débito e prometi ressarci-lo... Ampará­-los-ia... Auxiliaria os dois na senda terrestre... Lutaríamos, lado a lado, para conquistar a coroa de redenção... Sim, sim, o destino!... E’ preciso solver os compromissos do passado, conquistando o futuro!...

Calou-se o esposo de Zulmira, visivelmente fa­tigado, mas o enfermeiro, não obstante contido pela força paternal de Clarêncio, começou a chamar por Júlio emitindo brados terríveis.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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