quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

NUM LAR CRISTÃO

Propúnhamo-nos seguir o caso de Zulmira, não só para cooperar, a favor de suas melhoras, mas também para registrar os ensinamentos possíveis, e, solicitando o concurso de Clarêncio, dele ouvimos judiciosas ponderações.

— Sim — disse —, para auxiliar em processos dessa natureza, é preciso marchar para a frente, mas, para compreender o serviço que nos compete e avançar com segurança, é necessário voltar à retaguarda, armando-nos de lições que nos escla­reçam.

Não sabíamos como interpretar-lhe a palavra, entretanto, ele mesmo nos socorreu, explicando, de­pois de ligeira pausa:

— Para realizarmos um estudo geral da situa­ção, convém o contacto Com outras personagens do drama que se desenrola. Ser-nos-á interessante, para isso, uma visita ao pequeno Júlio, no domi­cílio espiritual em que estagia.

— Oh! será um prazer! — clamei, contente.

— Poderíamos seguir agora? — perguntou Hi­lário, encantado.

O Ministro refletiu por segundos e observou:

— Nas responsabilidades que esposamos, não é aconselhável indagar por indagar. Procuremos o objetivo, a utilidade e a colaboração no bem. Não nos achamos em férias e sim em trabalho ativo.

Pensou, pensou... e aduziu:

— Sei que amanhã, à noite, Eulália deve acom­panhar duas de nossas irmãs encarnadas à visita­ção dos filhinhos que as precederam na grande viagem da morte e que se encontram no mesmo sítio em que Júlio se demora asilado. Poderemos substituir nossa cooperadora no serviço a fazer. Seguiremos em lugar dela. Prestaremos assistên­cia às nossas amigas e examinaremos a situação da criança.

Anotando a preciosa lição de trabalho que aquelas expressões encerravam, aguardamos a noi­te próxima, com ansiedade real.

Na hora aprazada, descemos à matéria densa, em busca das irmãs que seguiriam conosco.

Deixou-nos o Ministro numa casinha singela de remota região suburbana, depois de informar-nos:

— Aqui reside nossa irmã Antonina, com três dos quatro filhos que o Senhor lhe confiou.

Inca­paz de vencer as tentações da própria natureza, o marido abandonou-a, há quatro anos, para com­prometer-se em delituosas aventuras. A dona da casa, porém, não desanimou. Trabalha com diligên­cia numa fábrica de tecidos e educa os rebentos do lar com acendrado amor ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus. Tem sabido resgatar com valor as dívidas que trouxe do pretérito próximo. Perdeu, há meses, o pequeno Marcos, de oito anos, atacado de fulminante pneumonia, e com ele se encontrará, depois da prece que proferirá com os pequeninos. Trarei comigo a outra companheira de nossa via­gem. Quanto a vocês, auxiliem nas orações e nos estudos de Antonina, até que eu volte, de modo a seguirmos todos juntos.

Hilário e eu penetramos a sala desataviada e estreita.

Uma senhora ainda jovem, mas extremamente abatida, achava-se de pé, junto de três lindas crian­ças, dois rapazinhos entre onze e doze anos e uma loura pequerrucha, certamente a caçula da família, que pousava na mãezinha os belos olhos azuis.

Num recanto do compartimento humilde, tris­te velhinho desencarnado como que se colocava à escuta.

Dona Antonina colocou sobre a toalha muito alva dois copos com água pura, tomou um exem­plar do Novo Testamento e sentou-se.

Logo após, falou carinhosamente:

— Se não me falha a memória, creio que a prece de hoje deve ser feita por Lisbela.

A pequenita levou as minúsculas mãos ao ros­to, apoiou graciosamente os cotovelos sobre a mesa e, cerrando os olhos, recitou:

— Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como nos Céus, o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nos­sos devedores, não nos deixeis cair em tentação e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja.

Lisbela abriu os olhos, de novo, e procurou silenciosamente a aprovação maternal.

Dona Antonína sorriu, satisfeita, e exclamou:

— Você orou muito bem, minha filha.

E dividindo agora a atenção com os dois me­ninos, entregou o Evangelho a um deles, convidando:

— Abra, Henrique. Vejamos a mensagem cris­tã para os nossos estudos da noite.

O rapazinho escolheu o texto, ao acaso, res­tituindo o livro às mãos maternais.

A genitora, emocionada, leu os versículos 21 e 22 do capítulo 18º das ano­tações do apóstolo Mateus:

— “Então Pedro, aproximando-se dele, disse:

— Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim e eu lhe perdoarei? Até sete? Jesus lhe disse: — Não te digo que até sete, mas até seten­ta vezes sete.”

Calou-se dona Antonina, como quem aguarda­va a manifestação de curiosidade dos jovens apren­dizes.

O pequeno Henrique, iniciando a conversação, perguntou, com simplicidade:

— Mãezinha, porque Jesus recomendava um perdão, assim tão grande?

Demonstrando vasto treinamento evangélico, a senhora replicou:

— Somos levados a crer, meus filhos, que o Divino Mestre, em nos ensinando a desculpar todas as faltas do próximo, inclinava-nos ao melhor pro­cesso de viver em paz. Quem não sabe desvenci­lhar-se dos dissabores da vida, não pode separar-se do mal. Uma pessoa que esteja parada em lem­branças desagradáveis caminha sempre com a irri­tação permanente. Imaginemos vocês na escola. Se não conseguirem esquecer os pequeninos abor­recimentos nos estudos, não poderão aproveitar as lições. Hoje é um colega menos amigo a preparar lamentável brincadeira, amanhã é uma incorreção do guarda enfadado em razão de algum equívoco. Se vocês imobilizarem o pensamento na impaciên­cia ou na revolta, poderão fazer coisa pior, afligin­do a professora, desmoralizando a escola e preju­dicando o próprio nome e a saúde. Uma pessoa que não sabe desculpar vive comumente isolada. Nin­guém estima a companhia daqueles que somente derramam de si mesmos o vinagre da queixa ou da censura.

Nessa altura do ensinamento, dona Antonina fitou o primogênito e perguntou:

— Você, Haroldo, quando tem sede preferiria beber a água escura de um cântaro recheado de lodo?

— Ah! isso não — replicou o mocinho muito sério —, escolherei água pura, cristalina...

— Assim somos também, em se tratando de nossas necessidades espirituais. A alma que não perdoa, retendo o mal consigo, assemelha-se ao vaso cheio de lama e fel. Não é coração que possa re­confortar o nosso. Não é alguém capaz de ajudar-nos a vencer nas dificuldades da vida.

Se apre­sentamos nossa mágoa a um companheiro dessa espécie, quase sempre nossa mágoa fica maior. Por isso mesmo, Jesus aconselhava-nos a perdoar in­finitamente, para que o amor, em nosso espírito, seja como o Sol brilhando em casa limpa.

Expressivo intervalo fêz-se notar.

O jovem Haroldo, de semblante apoquentado, interferiu, indagando:

— Mas a senhora crê, mãezinha, que devemos perdoar sempre?

— Como não, meu filho?

— Ainda mesmo quando a ofensa seja a pior de todas?

— Ainda assim

E, observando-o, inquieta, dona Antonina acen­tuou:

— Porque tratas deste assunto com tamanha preocupação?

— Refiro-me ao papai — disse o menino algo triste —, papai abandonou-nos quando mais preci­sávamos dele. Seria justo esquecer o mal que nos fêz?

— Oh! meu filho! — comentou a nobre mu­lher — não te detenhas nesse problema. Porque alimentar rancor contra o homem que te deu a vida? como condená-lo se não sabemos tudo o que lhe aconteceu? Seria realmente melhor para o nos­so bem estar se ele estivesse conosco, mas, se de­vemos suportar a ausência dele, que os nossos me­lhores pensamentos o acompanhem. Teu pai, meu filho, com a permissão do Céu, deu-te o corpo em que aprendes a servir a Deus. Por esse motivo, é credor de teu maior carinho. Há serviços que não podemos pagar senão com amor.

Nossa dívida para com os pais é dessa natureza...

Recordando talvez que a família se achava num curso de formação cristã, a dona da casa acres­centou:

— Um dia, quando Moisés, o grande profeta, foi ao monte receber a revelação divina, uma das mais importantes determinações por ele ouvidas do Céu foi aquela em que a Eterna Bondade nos recomenda: — “Honrarás teu pai e tua mãe”. A Lei enviada ao mundo não estabelece que devamos analisar a espécie de nossos pais, mas sim que nos cabe a obrigação de honrá-los com o nosso amo­roso respeito, sejam eles quais forem.

A reduzida assembléia recolhia as explicações, de olhos felizes e iluminados.

Haroldo mostrou-se conformado, todavia, ain­da ponderou:

— Compreendo, mãezinha, o que a senhora quer dizer. Entretanto, se papai estivesse junto de nós, talvez que Marcos não tivesse morrido. Te­ríamos o dinheiro suficiente para tratá-lo.

Dona Antonina enxugou, apressada, as lágri­mas que lhe caíram, espontâneas, ante a evocação do filhinho, e continuou:

— Seria um erro permitir a queda de nossa confiança no Pai Celestial. Marcos partiu ao encontro de Jesus, porque Jesus o chamava. Nada lhe faltou. Rogo a vocês não darmos curso a qual­quer idéia triste, em torno da memória do anjo que nos precedeu. Nossos pensamentos acompanham no Além aqueles que amamos.

Nesse ponto da conversação, Lisbela inquiriu, graciosa:

— Mãezinha, Marcos nos vê?

— Sim, minha filha — esclareceu dona Anto­nina, emocionada —, ele nos ajuda em espírito, pe­dindo a Jesus forças e bênçãos para nós. Por nossa vez, devemos auxiliá-lo com as nossas preces e com as nossas melhores recordações.

Dona Antonina, porém, pareceu asfixiada por enormes saudades. Enquanto os meninos comentavam com interesse os ensinamentos da noite, de­morava-se absorta, mentalizando a imagem do pe­quenino...

Quando o relógio assinalou o fim do culto, solícitou a Henrique fizesse a oração de encerramento.

O petiz repetiu a prece dominical, rogando ao Senhor abençoasse a mãezinha, e o trabalho terminou.

A dona da casa repartiu com os pequenos al­guns cálices da água cristalina que Hilário e eu magnetizáramos e, logo após, pensativa e saudosa, retirou-se com os filhinhos para a câmara em que se recolheriam todos juntos.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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