quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

DOR E SURPRESA

— Júlio! Júlio! comparece, covarde! ... — bra­mia o enfermeiro, possesso.

E percebendo talvez a simpatia que Amaro nos conquistara, à face da serenidade com que supor­tava a situação, prosseguiu, invocando, revel:

— Comparece para desmascarar o patife que procura comover-nos! Júlio, odeio-te! Mas é necessário apareças! Acusa teu desalmado assassino!...

O Ministro procurava contê-lo, bondoso, mas Silva, como potro indomesticado, gesticulava a es­mo e continuava, conclamando:

— Júlio!... Júlio!...

Sim, Júlio não respondeu à chamada, entre­tanto, alguém surgiu, surpreendendo-nos a atenção.

A irmã Blandina, em pessoa, qual se fora no­minalmente íntimada, estacou junto de nós.

Envolvidos na doce luz que nos banhou, de improviso, aquietamo-nos, perplexos, à exceção de Clarêncio que se mantinha calmo, como se aguar­dasse semelhante visita.

Depois de saudar-nos, Blandina rogou, hu­milde:

— Irmãos, por amor a Jesus, atendei !... Temos Júlio, sob a nossa guarda. Acha-se doente, aflito... Vossos apelos individuais alteram-lhe o modo de ser... Poderia colocar-se mentalmente ao vosso en­contro, contudo, atravessa agora difíceis provas de reajuste... Venho implorar-vos caridade!... Com­padecei-vos de quem hoje se esforça por olvidar o que foi ontem para regenerar-se amanhã, com eficiência!.

Havia tanta aflição e tanta ternura naquela rogativa que a vibração do ambiente modificou-se, de súbito.

Comecei a entender com mais clareza a trama obscura do romance vivo que abordávamos.

Júlio, o menino doente, era o companheiro que voltava na condição de filho do amigo com quem outrora se desaviera...

Não pude, porém, alongar divagações, porque Silva, provávelmente revoltado contra a emoção que nos senhoreava o espírito, passou a reclamar, de novo:

— Anjo ou mulher, não lutarei contra o sor­tilégio! Não lutarei! mas preciso arrojar este bandido ao despenhadeiro que merece por suas desla­vadas mentiras!... Que Júlio permaneça no céu ou no inferno, sob a custódia dos arcanjos ou dos demônios, todavia, exijo que a verdade surja, in­teira!... Recorro ao testemunho de Lina! que Lina compareça! que ela deponha! Se nos achamos aqui, convocados pelo destino que nos algema uns aos outros, que a pérfida mulher seja ouvida igual­mente...

Nosso instrutor, assumindo a chefia espiritual do grupo, convidou com energia e brandura:

— Lina encontra-se não longe de nós. En­tremos.

A determinação foi obedecida.

Na penumbra do quarto que já conhecíamos, a segunda esposa de Amaro jazia subjugada pela outra.

Enquanto Odila se nos afigurava mais ranco­rosa e mais dura, Zulmira revelava-se mais abatida.

Clarêncio enlaçou Mário, como um pai que re­colhe um filho, carinhosamente, e, apontando a enferma, esclareceu, generoso:

Amigo, acalma-te! Lina Flores, atualmente, padece na forja da luta e do sacrifício, a fim de recuperar-se. Apaga a labareda de ódio que te requeima o coração! Deixa que nova compreensão te beneficie a alma ulcerada!... Não nos cabe pre­judicar o caminho de quem procura a regeneração que lhe é necessária!.

Ante o olhar de Mário, espantadiço e agoniado, o Ministro considerou:

— Lina, hoje, com imensas dificuldades, tenta alcançar a altura do casamento digno e, superando tremendos obstáculos, constrói os alicerces da mis­são de maternidade para a qual se encaminha... Ajudemo-la com as nossas vibrações de compreen­são e carinho. Quando amamos realmente, antes de tudo é a felicidade da criatura amada que nos interessa...

Nosso grupo avançou algo mais.

Junto de nós, Blandina mantinha-se em prece.

O orientador abeirou-se da doente, com atenção respeitosa, e mostrou-lhe o rosto ossudo e triste ao enfermeiro que, ao reconhecê-la, bradou, ater­rado:

— Zulmira! Zulmira, então, é Lina que volta?

O Ministro acariciou-lhe a cabeça e informou, conciso:

— Sim, regressou em companhia de Armando, em dolorosas reparações, O consórcio para eles não foi o castelo de flores de laranjeira, mas sim uma associação de interesses espirituais para o trabalho regenerativo. Armando, em luta no plano da vida real para reerguer-se, aceitou o compromisso de reconduzi-la à dignidade feminina, amparando-lhe as angústias silenciosas...

Estupefato, Silva exclamou, cambaleante:

— Quer dizer então que Zulmira me traiu duas vezes?

— Não te refiras à traição — corrigiu Cla­rêncio, sem alterar-se —, é imprescindível compreender! Armando, ontem, escutou apelos inferiores, incompatíveis com as responsabilidades de que se via depositário. Hoje, é compelido a responder, embora constrangido, a requisições de natureza edi­ficante, às quais, em verdade, não lhe será lícito fugir. Lina Flores reclama alguém que a recambie ao serviço renovador, a fim de que se habilite a auxiliar Júlio, devidamente. Todos somos devedo­res uns dos outros. As almas aprimoram-se, grupo a grupo, à maneira de pequenas constelações, gra­vitando em torno do Sol Magno, Jesus-Cristo!... Como um astro que se distancia do núcleo em que se integra, abandonaste a órbita de velhos compa­nheiros de evolução, caindo, pelas vibrações de afe­tividade e ódio, no centro de forças em que Leo­nardo Pires e Lola Ibarruri aguardam-te a precisa cooperação, de modo a se liberarem perante a Lei. Amaro, noutro tempo, separou Zulmira e Júlio, es­tabelecendo espinheiros dilacerantes entre os dois... Agora, cabe-lhe reuni-los no carinho familiar, para que na posição de mãe e filho se reajustem na afei­ção santificadora... Antigamente, isolaste Leonar­do da afetuosa assistência de Lola, criando emba­raços asfixiantes à própria marcha... Prepara-te na fé para congregá-los, de novo, no templo do­méstico, igualmente na condição de filho e mãe, de maneira a se redimirem para a bênção do amor puro...

Nossas ações são pesadas na Justiça Di­vina... Não podemos enganar o Supremo Senhor.

Nossos débitos, por isso mesmo, devem ser resga­tados, ceitil a ceitil.

A ligeira preleção trouxera-nos enorme pro­veito.

Amaro dobrara a cerviz, revelando-se disposto a obedecer aos ditames de natureza superior, fossem como fossem.

Silva, no entanto, não parecia desperto para as verdades que Clarêncio pronunciara.

Hipnotizado na contemplação da mulher que­rida, demonstrava-se indiferente.

Depois de fitá-la, absorto, entre o carinho e a aversão, quebrou a quietude que envolvera o recinto, rugindo, desesperado:

— Não posso modificar-me, desgraçado de mim!... Odiarei! odiarei a infame que voltou!...

Somente a vingança me convém, não quero per­doar! não quero perdoar!...

Novamente enraivecido e inquieto, como fera solta, erguia os punhos cerrados contra a desditosa mulher que jazia no leito, em lastimável prostra­ção. Seu veículo espiritual rodeava-se agora de um halo cinzento-escuro, que despendia raios desagra­dáveis e perturbantes.

Nosso orientador libertou-o da influência mag­nética com que lhe tolhia as energias.

Tão logo se reconheceu sem o controle que lhe sofreava os movimentos, Silva retrocedeu, excla­mando:

— Não suporto mais! não suporto mais!...

E correu para o seio da noite.

Clarêncio recomendou-nos seguir-lhe o passo, enquanto prestaria assistência ao ferroviário e à esposa, em colaboração com Blandina. O enfermei­ro, decerto — informou o Ministro prestimoso —, retomaria o corpo denso em aflitivas condições de saúde. Passes anestesiantes deviam favorecê-lo. Não podia lembrar a experiência grave daquela hora. A aventura provocada pela insistência men­tal dele mesmo era suscetível de perigosas conse­qüências.

Num átimo, Hilário e eu achamo-nos ao lado de Silva, que aderia ao envoltório de carne com o au­tomatismo da molécula de ferro, atraida pelo imã.

Examinamo-lo, atentamente.

O peito arfava-lhe, sibilante.

O coração acusava-se desgovernado, sob o im­pério de insopitável arritmia.

De imediato, entramos em ação, sossegando-lhe o campo mental, quanto possível, através de sedativos magnéticos.

Ainda assim, apesar dos passes, pelos quais foi completamente envolvido de energias revigorado­ras, o moço acordou agoniado, hesitante e trêmulo, como se estivesse fugindo de medonhas tempesta­des no mundo íntimo.

Semi-inconsciente, despendeu vários minutos para identificar-se.

O pensamento surgia-lhe atormentado, nebu­loso...

Tentou locomover-se, mas não conseguiu. Sen­tia-se chumbado à cama, quase na situação de um cadáver repentinamente desperto.

Buscou alinhar recordações, contudo, não pôde. Sabia tão somente que atravessara grande pe­sadelo cujas dimensões lhe não cabiam na memória.

Suarento, aflito, sentia-se morrer...

Instintivamente orou, suplicando a Proteção Divina.

Bastou essa atitude d'alma para ligar-se, com mais facilidade, aos fluidos restauradores que lhe administrávamos.

Pouco a pouco, readquiriu os movimentos li­vres e levantou-se, ingerindo uma pílula calmante.

Amedrontado, sentou-se no leito e, mergulhan­do a cabeça nas mãos, falou, sem palavras, de si para consigo: — «Estou evidentemente conturbado. Amanhã, consultarei um psiquiatra. É a minha única solução».

Sim — concordei comigo mesmo —, o ódio gera a loucura. Quem se debate contra o bem, cai nas garras da perturbação e da morte.

Com semelhante raciocínio, afastei-me.

Clarêncio aguardava-nos.

Era preciso continuar na lição.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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