quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

ESTUDANDO SEMPRE

Às despedidas, retomamos as excursionistas sob a nossa guarda e, em pouco tempo, achávamo­-nos, de novo, no caminho terrestre.

Da faixa de luz solar, tornamos à imersão na sombra noturna, mas o espetáculo do céu não diminuíra em beleza, porque as primeiras cores da alvorada tingiam o distanciado horizonte.

Clarêncio restituiu a companheira de Antonina ao lar, depois de afetuoso adeus. E, sem maiores delongas, demandamos o ninho doméstico de nossa amiga.

Antonina mostrava-se calada, tristonha...

Dir-se-ia teimava em permanecer, para sempre, junto do pequenino que a precedera na longa via­gem da morte. Todavia, em penetrando o estrei­to santuário familiar, dirigiu-se apressadamente ao quarto, de coração novamente atraído para os ou­tros filhinhos.

O Ministro, paternal, fê-la deitar-se e aplicou-lhe recursos magnéticos sobre os centros corticais. A mãezinha de Marcos demonstrou experimen­tar leve e doce vertigem...

Atendendo ao orientador, demoramo-nos em observação, notando que a Antonina de nossa ma­ravilhosa viagem aderira ao corpo denso, qual se fora por ele sugada, à maneira de formosa mu­lher, de forma sutil e semilúcida, repentinamente engulida por bainha de sombra. Em se justapondo ao cérebro físico, perdera a acuidade mental com que se caracterizava junto de nós. Com a fisiono­mia calma e feliz, despertou no veículo pesado...

Contudo, Antonina não mais nos viu.

Era agora simplesmente a mulher humana, nas cobertas agasalhantes do leito, acomodada à escuridão do recinto.

Lembrava-se, sim, do passeio ao Lar da Bên­ção, mas através de impressões a se esfumarem, rápidas.

Só a imagem do filhinho, tema central do seu amor, lhe persistia clara e movimentada na me­mória...

Nossa presença e todas as demais particula­ridades do vôo sublime lhe acudira à lembrança por acessórios fantásticos a se lhe perderem nos obscuros escaninhos da imaginação.

Como quem seleciona preciosidades, a conso­lada mãezinha procurava, ansiosa, nos arquivos da própria mente, todas as palavras que ouvira do filho abençoado, buscando retê-las no escrínio do coração. Por isso, das valiosas observações de Cla­rêncio, em poucos minutos não lhe restava na alma qualquer reminiscência.

Antonina movimentou-se, fêz luz e ouvimo-la pensar, vibrante: — Oh! meu Deus, que alegria! pude vê-lo perfeitamente! quero guardar a recor­dação deste sonho divino!... Marcos, Marcos, que saudades, meu filho!...

O Ministro abeirou-se dela, acariciou-lhe a ca­beça, como se a envolvesse em fluidos calmantes e a simpática senhora restabeleceu a sombra no recinto.

Abraçando a caçula que repousava ao seu lado, novamente dormiu.

— Nossa amiga não poderá guardar positivas recordações — informou Clarêncio com atenção.

— Mas, porquê? — indagou Hilário, admirado.

— Raros Espíritos estão habilitados a viver na Terra, com as visões da vida eterna. A penumbra interior é o clima que lhes é necessário. A exata lembrança para ela redundaria em saudade morta!. Como isso é lamentável! — alegou o meu companheiro, penalizado

O Ministro todavia, explicou paciente:

— Cada estágio na vida se caracteriza por finalidades especiais. O mel é saboroso néctar para a criança, mas não deve ser ministrado indis­criminadamente. Reclama dosagem para não vir a ser importuno laxativo. O contacto com o reino espiritual, enquanto nos demoramos no envoltório terrestre, não pode ser dilatado em toda a exten­são, para que nossa alma não afrouxe o interesse de lutar dignamente até o fim do corpo. Antonina lembrar-se-á de nossa excursão mas de modo vago, como quem traz no campo vivo da alma um belo quadro de esbatidos contornos. Recordar-se-á po­rém, do filhinho mais vivamente, o bastante para sentir-se reconfortada e convicta de que Marcos a espera na Vida maior. Semelhante certeza ser-lhe-á doce alimento ao coração.

O silêncio passou a dominar o recinto mas Clarêncio quebrou-o, quase de imediato convidando-nos a socorrer o velhinho que nos aguardava.

Dormitava o ancião numa velha cadeira.

— Será sono? — perguntou Hilário, mais novo que eu na vida do Além.

- Sim — Confirmou o instrutor, benevolente -, na fase em que se encontra, Leonardo subordi­na-se a todos os fenômenos da existência vulgar. Não prescinde, assim, do repouso para refazer-se.

Examinamo-lo mais detidamente.

Sem dúvida, o ancião trazia um veículo seme­lhante ao fosso, segundo os princípios organogênios que presidem à constituição do corpo espiri­tual, contudo mostrava-se tão pesado e tão denso como se ainda envergasse a túnica de carne.

Deixei a Hilário os pruridos de curiosidade que em Outro tempo, me assaltavam de inopino.

Após lhe observar o aspecto desagradável, meu colega inquiriu sobre as razões de tal obscureci­mento.

O Ministro não se fêz rogado e explicou:

— O psicossoma (*) ou o perispírito da defini­ção espírita não é idêntico de maneira absoluta em todos nós, assim como, na realidade, não existem dois corpos físicos totalmente iguais. Cada cria­tura vive num carro celular diferente, apesar das peças semelhantes, impostas pela lei das formas. No círculo de matéria densa, sofre a alma encar­nada os efeitos da herança recolhida dos pais, en­tretanto, na essência, a lei da herança funciona invariavelmente do indivíduo para ele mesmo. De­temos tão somente o que seja exclusivamente nosso ou aquilo que buscamos.

Renascemos na Terra, junto daqueles que se afinam com o nosso modo de ser, O dipsômano não adquire o hábito desre­grado dos pais, mas sim, quase sempre, ele mesmo já se confiava ao vício do álcool, antes de renas­cer. E há beberrões desencarnados que se aderem àqueles que se fazem instrumentos deles próprios.

E, imprimindo grave entono à voz, ponderou:

— A hereditariedade é dirigida por princípios de natureza espiritual. Se os filhos encontram os pais de que precisam, os pais recebem da vida os filhos que procuram.

Lembrei-me repentinamente de alguns dos grandes gênios da Humanidade, que produziram filhos monstruosos ou medíocres. Mas, vindo ao en­contro do meu pensamento, o orientador observou:

— No campo das grandes virtudes, os pais usam, por vezes, a compaixão reedificante, empe­nhando-se em tarefas de sacrifício. Temos no mundo mulheres e homens admiráveis que, consolidando qualidades superiores na própria alma, se dispõem a buscar afetos que permanecem a distância, no passado em tentativas heróicas de auxílio e rea­justamento.

E, sorrindo, acrescentou:

- Na família consangüínea ou na família hu­mana, obtemos o que buscamos quem já acertou as próprias contas com a justiça, pode confiar-se aos sublimes rasgos do amor.

Em seguida, Clarêncio deteve-se na contem­plação do velhinho que repousava e continuou co­mentando, mais particularmente com Hilário:

— Conforme a vida de nossa mente, assim vive nosso corpo espiritual. Nosso amigo entregou-se, demasiado às criações interiores do tédio, ódio, de­sencanto, aflição e condensou semelhantes forças em si mesmo, coagulando-as desse modo, no veícu­lo que lhe serve às manifestações. Daí, esse as­pecto escuro e pastoso que apresenta. Nossas obras ficam conosco. Somos herdeiros de nós mesmos.

— Mas... e se nosso Irmão trabalhasse? se depois da morte procurasse conjugar o verbo ser­vir? — inquiriu meu colega, preocupado.

Ah! indiscutivelmente o trabalho renova qualquer posição mental. Gerando novos motivos de elevação e novos fatores de auxílio, o serviço estabelece caminhos outros que realmente funcio­nam como recursos de libertação. Por isso mesmo, o constante apelo do Senhor à ação e à fraternidade se estende, junto de nós, diàriamente através de mil modos... Todavia, quando não nos devo­tamos ao trabalho, enquanto nos demoramos na vestimenta terrestre, mais difícil se faz para nós a superação dos obstáculos mentais, porque a in­dolência trazida do mundo é tóxico cristalizante de nossas idéias, fixando-as, por vezes, durante tempo indefinível. Se pretendemos possuir um psicosso­ma sutilizado capaz de reter a luz dos nossos me­lhores ideais, é imprescindível descondensá-lo pela sublimação incessante de nossa mente, que precisará, então, centralizar-se no esforço infatigável do bem. É para esse fim que o Pai Celestial nos concede a dor e a luta, a provação e o sofrimen­to, únicos elementos reparadores, suscetíveis de produzir em nós o reajuste necessário, quando nos pomos em desacordo com a Lei.

Lá fora, porém, as aves matutinas anunciavam o novo dia...

A tênue claridade da manhã penetrava o re­cinto.

Clarêncio lembrou que para socorrer o ancião ensandecido não dispensaríamos algum trabalho de análise da mente, e, porque semelhante servi­ço demandaria talvez a cooperação de companhei­ros encarnados, que não deviam ser incomodados na paisagem diurna, o Ministro convocou-nos à retirada.

O prosseguimento da tarefa assistencial, desse modo, foi marcado para a noite seguinte.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.
(*) Do grego: psyké, alma, espírito, e soma, corpo. — (Nota da Editora.)

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