domingo, 19 de janeiro de 2014

NO LAR DA BÊNÇÃO

Clarêncio movimentou a destra, indicando-nos o quadro sublime a desdobrar-se sob a nossa vista.

Doce melodia que enorme conjunto de meninos acompanhava, cantando um hino delicado de exal­tação do amor materno, vibrava no ar.

Aqui e ali, sob tufos de vegetação verde-clara, muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos braços.

— É o Lar da Bênção — informou o instru­tor, satisfeito. — Nesta hora, muitas irmãs da Terra chegam em visita a filhinhos desencarnados. Temos aqui importante colônia educativa, misto de escola de mães e domicílio dos pequeninos que re­gressam da esfera carnal.

O Ministro, porém, interrompeu-se, de impro­viso.

Nossas companheiras pareciam agora tomadas de jubilosa aflição.

Vimo-las desgarrar, de inopino, qual se fossem atraidas por forças irresistíveis, precipitando-se para os anjinhos que cantarolavam alegremente. Enquanto a que nos era menos conhecida enlaçava louro petiz, com infinito contentamento a expres­sar-se em lágrimas, dona Antonina abraçou um pe­queno de formoso semblante, gritando, feliz:

— Marcos! Marcos!...

— Mãezinha! Mãezinha!... — respondeu a criança, colando-se-lhe ao peito.

Clarêncio fêz sinal para as irmãs vigilantes, que se responsabilizavam pelos entretenimentos no parque, como a solicitar-lhes proteção e carinho para as nossas associadas de excursão, e disse-nos, em seguida:

— O pequeno Júlio não se encontra no grupo. Ainda sofre anormalidades que lhe não permitem o convívio com as crianças felizes. Acha-se no lar da irmã Blandina. Rumemos para lá.

Em poucos minutos, chegávamos diante de pe­quenino castelo muito alvo, em que se destacavam as ogivas azuis, coroadas de trepadeiras em flor.

Atravessamos extenso jardim, embalsamado de aroma.

Rosas opalinas, ignoradas na Terra, de mistura com outras flores, desabrochavam profusamente.

A irmã Blandina recebeu-nos sorridente, apre­sentando-nos uma senhora simpática que lhe fora avozinha no mundo.

Mariana, nossa nova amiga, cumprimentou-nos, bondosa.

Findas as saudações usuais, Clarêncio tocou, direto, no assunto.

Desejávamos avistar o pequeno Júlio, que ha­via desencarnado por afogamento.

Blandina, que em plena juvenilidade trazia nos olhos os característicos de sublime madureza de espírito, respondeu gentilmente:

— Ah! com muito prazer!

E, encaminhando-nos a iluminada peça, orna­mentada de róseos enfeites, onde um menino repou­sava num leito muito branco, explicou, sem afe­tação:

— Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez completamente. Ainda grita sob pesadelos inquietantes, como se estivesse a sofrer sob as águas. Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer mais receptivo ao nosso carinho. Insiste pela vol­ta a casa, todos os dias.

Acercamo-nos do berço largo em que des­cansava.

O menino lançou-nos um olhar de atormentada desconfiança, mas, contido pela ternura da irmã que o assistia, permaneceu mudo e impassível.

— Ainda não se mostrou em condições de par­tilhar os estudos com os outros? — perguntou o Ministro, interessado.

— Não — informou a interpelada, solícita —, aliás, os nossos benfeitores Augusto e Cornélio, que nos amparam frequentemente, são de parecer que ele não conseguirá adquirir aqui qualquer melhora real, antes da reencarnação que o aguarda. Traz a mente desorganizada por longa indisciplina.

Bem humorada, acrescentou:

— É um paciente difícil. Felizmente, dispo­mos da cooperação de nossa devotada Mariana, que o adotou por filho espiritual, até que retorne ao lar terrestre. Foi preciso segregá-lo neste quarto, tamanha é a gritaria a que se entrega por vezes.

— Mas não tem recebido o tratamento mag­nético aconselhável? — indagou Clarêncio, atencioso.

— Diariamente recebe o auxílio necessário —esclareceu Blandina, com humildade —, eu mesma sou a enfermeira. Passes e remédios não faltam.

— E a irmã conhece o caso em suas particu­laridades?

— Sim, conheço. Eulália tem vindo até nós. Lastimo que a mãezinha de nosso doente não esteja em condições de ampará-lo. Creio que o concurso dela poderia insuflar-lhe novas forças.

Entretanto, com exceção da irmãzinha que se lembra dele nas orações, ninguém mais da família o ajuda.

— Mãezinha! Mãezinha L.. — clamou o pe­queno, em voz rouca, erguendo-se e enlaçando Blan­dina, pálido e inquieto.

— Que te incomoda, meu filho?

— Dói-me a garganta... — lamentou-se o rapazinho.

A jovem benfeitora abraçou-o, osculando-lhe os cabelos, e recomendou:

— Não te aflijas. Como é que um moço de teu valor pode chorar, assim por nada? Imagina!

Temos três médicos em casa. E’ impossível que a dor não fuja apressada.

Logo após, sentou-o numa poltrona e solícitou a colaboração de Clarêncio.

O Ministro, cuidadoso, pediu-lhe abrisse a boca e, surpreendidos, notámos que a fenda glótica, prin­cipalmente na região das cartilagens aritenóides, apresentava extensa chaga.

O orientador aplicou-lhe recursos magnéticos especiais e, em poucos instantes, Júlio voltou à tranqüilidade.

— Então? — falou Blandina, amparando-o, afetuosa — onde está agora a garganta dolorida?

E, visivelmente satisfeita, acrescentou:

— Já agradeceste ao nosso benfeitor, meu filho?

O menino, hesitante, caminhou para o Minis­tro, beijou-lhe a destra com respeitoso carinho e balbuciou:

— Muito agradecido.

Blandina ia dizer algo, mas Júlio correu para o seu regaço, choramingando:

— Mãezinha, tenho sono...

A abnegada jovem acolheu-o, com ternura, re­conduzindo-o ao repouso.

Quando tornou à sala, Clarêncio informou que doara ao enfermo energias anestesiantes.

Notara-o fatigado, resolvendo, por isso, induzi-lo ao descanso.

E, talvez porque nos percebesse o cérebro es­fogueado de indagações, quanto àquela minúscula garganta ferida, depois da morte do corpo, o Mi­nistro explicou:

— É pena. Júlio envolveu-se em compromis­sos graves. Desentendendo-se com alguns laços afe­tivos do caminho, no século passado, confiou-se a extrema revolta, aniquilando o veículo físico que lhe fora emprestado por valiosa bênção. Renden­do-se à paixão, sorveu grande quantidade de cor­rosivo. Salvo, a tempo, sobreviveu à intoxicação. mas perdeu a voz, em razão das úlceras que se lhe abriram na fenda glótica. Ainda aí, não se confor­mando com o auxílio dos colegas que o puseram fora de perigo, alimentou a idéia de suicídio, sem recuar. Foi assim que, não obstante enfermo, bur­lou a vigilância dos companheiros que o guarda­vam e arrojou-se a funda corrente de um rio, nela encontrando o afogamento que o separou do en­voltório carnal. Na vida espiritual, sofreu muito, carregando consigo as moléstias que ele mesmo infligira à própria garganta e os pesadelos da asfi­xia, até que reencarnou, junto das almas com as quais se mantém associado para a regeneração do pretérito. Infelizmente, porém, encontra dificulda­des naturais para recuperar-se.

Lutará muito, an­tes de incorporar-se a novo patrimônio físico.

Registrávamos aqueles apontamentos com dolo­rosa admiração. Uma criança doente é sempre um espetáculo comovedor.

Não nos atreviamos a manifestar nossos pen­samentos de estranheza, todavia, o prestimoso ami­go, assinalando-nos decerto as dúvidas, acentuou:

— Há poucos instantes, comentávamos a su­blimidade da Lei. Ninguém pode trair-lhe os princípios. A Bondade Divina nos assiste, de múltiplas maneiras, amparando-nos o reajustamento, mas em todos os lugares viveremos jungidos às consequên­cias dos próprios atos, de vez que somos herdeiros de nossas próprias obras.

O assunto constituía preciosa sugestão para interessantes estudos, mas, antes de enunciar qual­quer pergunta, busquei aspirar, a longos haustos, as baforadas frescas de vento, que carreavam para o recinto vagas sucessivas de agradável perfume.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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