domingo, 12 de janeiro de 2014

NO CENÁRIO TERRESTRE

Numa sala ampla, em que numerosas entida­des trabalhavam solícitas, Clarêncio recebeu da jo­vem um pequeno gráfico que passou a examinar, cauteloso.

Em seguida, comentou, espontâneo:

— Ainda agora, falávamos de responsabilida­de. Eis um fato que nos ilustra os conceitos.

E, exibindo o documento que trazia nas mãos, explicou:

— Temos aqui uma oração comovedora que superou as linhas vibratórias comuns do plano de matéria mais densa. Parte de uma devotada ser­vidora que se ausentou de nossa cidade espiritual, há precisamente quinze anos terrestres, para de­terminadas tarefas na reencarnação. Não seguiu, porém, desassistida. Permanece sob nossa orien­tação, o nascimento e o renascimento, no mundo, sob o ponto de vista físico, jazem confiados a leis biológicas de cuja execução se incumbem Inteligên­cias especializadas, contudo, em suas característi­cas morais, subordinam-se a certos ascendentes do espírito.

O Ministro deteve-se alguns instantes, analisan­do a pequenina e complicada ficha, todavia, como se provocasse a continuidade da lição que recebía­mos, meu companheiro considerou:

— Mas, indiscutivelmente, na reencarnação há um programa de serviço a realizar...

— Sim, sem dúvida — aclarou o instrutor —, quanto mais vastos os recursos espirituais de quem retorna à carne, mais complexo é o mapa de tra­balho a ser obedecido. Quase todos temos do pre­térito expressivo montante de débito a resgatar e todos somos desafiados pelas aquisições a fazer. Nisso está o programa, significando em si uma espécie de fatalidade relativa no ciclo de experiên­cias que nos cabe atender; entretanto, a conduta é sempre nossa e, dentro dela, podemos gerar cir­cunstâncias em nosso benefício ou em nosso des­favor. Reconhecemos, assim, que o livre arbítrio, também relativo, é uma realidade inconteste em todas as esferas de evolução da consciência. Não podemos olvidar, contudo, que, em todos os planos, marchamos em verdadeira interdependência. Nas linhas da experiência física, até certo ponto, os filhos precisam dos pais, os doentes necessitam dos médicos e os moços não prescindem do aviso dos mais velhos. Aqui, a habilitação depende dos educadores, o amparo eficiente exige quem sai­ba distribuí-lo, e a transferência de domicílio para trabalho enobrecedor, quando se trata de Espíritos sem méritos absolutos, reclama o endosso de auto­ridades competentes.

— Mas, que vem a ser uma oração refratada? — indagou o meu colega, mordido de curiosidade. Hilário fora igualmente médico no mundo e, tanto quanto eu, permanecia em tarefas ligadas à responsabilidade de Clarêncio, adquirindo conheci­mentos especializados.

— A prece refratada é aquela cujo impulso luminoso teve a sua direção desviada, passando a outro objetivo.

Inclinávamo-nos a desfechar novas perguntas, no entanto, o orientador sossegou-nos, esclarecendo:

— Esperem. Reconhecerão comigo que nos achamos todos imanados uns aos outros.

Em seguida, falou para a jovem que o obser­vava, respeitosa:

— Chame a irmã Eulália.

Alguns momentos passaram, rápidos, e a co­operadora mencionada apareceu irradiando bonda­de e simpatia.

— Irmã — disse Clarêncio, preciso —, este gráfico registra aflitivo apelo de Evelina, cuja volta ao aprendizado na carne foi garantida por nossa organização. Parece-me estar a pobrezinha em ex­tremas dificuldades...

— Sim — concordou a interpelada —, Evelina, apesar da fragilidade do novo corpo, vem susten­tando imensa luta moral. O pai, sobrecarregado de questões íntimas, tem a saúde periclitante e a madrasta vem sofrendo obstinada perseguição, por parte de nossa desventurada Odila.

— A genitora de Evelina?

— Sim, ela mesma. Ainda não se resignou a perder a primazia feminina no lar. Há dois anos empenho energia e boa vontade por dissuadi-la. Vive, porém, enovelada nos laços escuros do ciúme e não nos ouve, o egoísmo desbordante fá-la es­quecida dos compromissos que abraçou.

Zulmira, por sua vez, a segunda esposa de Amaro, desde a morte do pequenino Júlio caiu em profundo aba­timento. Como não ignoramos, o pequeno desen­carnou afogado, consoante as provas de que se fêz devedor. A madrasta, contudo, que chegou a desejar-lhe o desaparecimento por não amá-lo, en­contrando-se sob as sugestões da mulher que a precedeu nas atenções do marido, crê-se culpada... Evelina, depois de perder o maninho em trágicas circunstâncias, acha-se desorientada, entre o geni­tor aflito e a segunda mãe, em desespero... Ainda anteontem, pude vê-la. Chorava, comovedoramen­te, diante da fotografia da mãezinha desencarna­da, suplicando-lhe proteção. Odila, porém, envolvida nas teias das próprias criações mentais, não se mostra capaz de corresponder à confiança e à ter­nura da menina. Ela, entretanto, tem insistido com tal vigor na obtenção de socorro espiritual que as suas rogativas, quebrando a direção, chegam até aqui, de tal modo...

Reparávamos o pequeno gráfico em Silêncio.

Sustando a pausa longa, o Ministro fixou Hilário e indagou:

— Compreendem agora o que seja uma oração refratada? Evelina recorre ao espírito materno que não se encontra em condições de escutá-la, mas a solicitação não se perde... Desferida em elevada frequência, a súplica de nossa irmãzinha vara os círculos inferiores e procura o apoio que lhe não faltará.

Passeando em nós o olhar muito lúcido, con­cluiu:

— Desejariam cooperar conosco na tarefa as­sistencial?

Sem dúvida, o caso fascinava-nos a atenção.

O orientador, no entanto, recomendou espe­rássemos dois dias. Desejava inteirar-se, a sós, de todas as ocorrências, para instruir-nos com segu­rança, quando estivéssemos a usufruir-lhe a companhia.

Nossa excursão, todavia, foi marcada e, no momento preciso, achávamo-nos a postos.

Sem delonga na viagem, Clarêncio, Eulália, Hilário e eu encontramo-nos em residência modesta, mas confortável, num dos bairros do Rio de Janeiro.

O relógio citadino acusava exatamente vinte e uma horas.

Entramos.

Em estreito compartimento, à guisa de gabi­nete de trabalho e biblioteca, um homem de trinta e cinco anos presumíveis lia, com visíveis sinais de preocupação, um manual de mecânica.

Na secretária singela, desdobravam-se publi­cações diversas, denunciando-lhe os estudos.

Clarêncio, assumindo com mais propriedade o papel de mentor do nosso grupo, informou, gentil:

— Este é Amaro, o chefe da casa. Tem, no longo pretérito, complicados compromissos. Em muitas ocasiões, usou projetis e lâminas de ferro para o mal. Hoje, é servidor categorizado numa ferrovia...

Em seguida, passamos a gracioso quarto próximo.

Encantadora adolescente de catorze anos bor­dava iniciais num lenço de linho.

Magra e triste, parecia concentrar a mente nos olhos grandes e serenos. Não nos assinalou a presença, mas, ao contacto das mãos espirituais do Ministro, revelou indefinível contentamento interior.

Instintivamente, desviou o olhar do pano alvo e fixou-o num retrato de mulher que pendia da parede. Sorriu, enlevada, qual se conversasse com a imagem, enquanto Clarêncio nos dizia:

— Esta é a nossa Evelina, cuja reencarnação foi por nós organizada, faz alguns anos. A fotografia é uma lembrança da mãezinha que já par­tiu. Evelina está ligada aos pais, através de imenso amor, desde séculos remotos. Veio ao encontro de criaturas e situações das quais necessita para a garantia da própria ascensão, mas trouxe tam­bém consigo a tarefa de auxiliar os progenitores. No momento, acredita-se amparada pela mãezinha, entretanto, pelos méritos já acumulados na vida espiritual, é ela mesma quem continua socorrendo o coração materno, ainda em luta...

Abracei, comovido, a mocinha extática, que se guardava em luminoso halo de tranquilidade e, por alguns instantes, meditei na grandeza do amor e na sublimidade da oração.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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