quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

ANÁLISE MENTAL

O relógio terrestre assinalava meia-noite e três quartos, quando tornamos ao singelo domicílio de Antonina.

A casinha dormia, calma.

Acocorado a um canto, o velho Leonardo man­tinha-se na sala, pensando... pensando...

Adensamo-nos, ante a visão dele, e, reconhe­cendo-nos, ergueu-se e começou a gritar:

— Ajudai-me, por amor de Deus! Estou pre­so! preso!...

Clarêncio, bondoso, convidou-o a acomodar-se na poltrona simples e induziu-o à prece.

O velhinho, contudo, alegou total esquecimento das orações que formulara no mundo, crendo que apenas lhe serviriam as palavras decoradas, mas o orientador, elevando a voz, com o intuito evi­dente de sossegá-lo na confiança íntima, pronun­ciou comovente súplica à Divina Providência, im­plorando-lhe proteção e segurança para quem se mostrava tão desarvorado e tão infeliz.

Emocionados com aquela petição que nos re­novava igualmente as disposições interiores, obser­vamos que o avô de Antonina se aquietara, re­signado.

Clarêncio, logo após a oração, começou a apli­car-lhe forças magnéticas no campo cerebral.

O paciente revelou-se mais intensamente abatido. A cabeça pendeu-lhe sobre o peito, desgover­nada e sonolenta.

Fitando-nos de modo significativo, o Ministro ponderou:

— A corrente de força devidamente dinami­zada no passe magnético arrancá-lo-á da sombra anestesiante da amnésia. Poderemos, então, son­dar-lhe o íntimo com mais segurança. Assistido por nossos recursos, a memória dele regredirá no tem­po, informando-nos quanto à causa que o retém junto da neta, aclarando-nos, ainda, sobre prová­veis ligações que nos conduzirão à chave do socor­ro, a benefício dele mesmo.

— Mas o retrocesso das recordações poderá verificar-se de improviso? — indagou Hilário, per­plexo.

— Sem dúvida — respondeu o instrutor —, a memória pode ser comparada a placa sensível que, ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens recolhidas pelo espírito, no curso de seus inume­ráveis aprendizados, dentro da vida. Cada existên­cia de nossa alma, em determinada expressão da forma, é uma adição de experiência, conservada em prodigioso arquivo de imagens que, em se su­perpondo umas às outras, jamais se confundem. Em obras de assistência, qual a que desejamos mo­vimentar, é preciso recorrer aos arquivos mentais, de modo a produzir certos tipos de vibração, não só para atrair a presença de companheiros ligados ao irmão sofredor que nos propomos socorrer, como também para descerrar os escaninhos da mente, nas fibras recônditas em que ela detém as suas aflições e feridas invisíveis.

— Quer dizer então que...

A frase de Hilário, porém, se lhe apagou nos lábios, porque o Ministro atalhou, completando-lhe a conceituação:

— A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e deve sofrer intervenções para reequilibrar-se.

Mais tarde, a ciência humana evolverá em cirurgia psi­quica, tanto quanto hoje vai avançando em técnica operatória, com vistas às necessidades do veiculo de matéria carnal. No grande futuro, o médico ter­restre desentranhará um labirinto mental, com a mesma facilidade com que atualmente extrai um apêndice condenado.

Hilário arregalou os olhos, espantado feliz. E exclamou, em voz quase gritante:

— Ah! Freud, como viste a verdade!.., como detinhas a razão!...

O orientador fixou-o, paternalmente e aduziu:

— Freud Vislumbrou a verdade, mas toda ver­dade sem amor é como luz estéril e fria. Não bastará conhecer e interpretar. É indispensável sublimar e servir. O grande cientista observou as­pectos de nossa luta espiritual na senda evolutiva e catalogou os problemas da alma, ainda encarcerada nas teias da vida inferior. Assinalou a pre­sença das chagas dolorosas do ser humano, mas não lhes estendeu eficiente bálsamo curativo. Fez muito, mas não o bastante, O médico do porvir, para sanar as desarmonias do espírito, precisará mobilizar o remédio salutar da compreensão e do amor, retirando-o do próprio coração. Sem mão que ajude, a palavra erudita morre no ar.

O Ministro, contudo, calou-se, dando-nos a en­tender que o momento não comportava digressões filosóficas

Acariciou, ainda por alguns instantes, a cabeça do ancião e, em seguida, chamou-o, de manso:

— Leonardo, recorda! Volta ao Paraguai, onde adquiriste o remorso que hoje te retalha o cora­ção! A dor, quase sempre, é culpa sepultada dentro de nós... Retrocedamos ao ponto inicial de teu sofrimento!... Recorda! Recorda!...

O velhinho, diante de nosso intraduzível as­sombro, acordou de olhos transtornados.

Ergueu a fronte, mas seu rosto alterara-se de maneira sensível.

Sustentava iniludivelmente os traços funda­mentais, mas fizera-se mais jovem.

Registrando a surpreendente transfiguração, Hilário interferiu, perguntando:

— Oh! que força mágica será esta?

Nosso orientador fitou-o, sereno, e esclareceu:

— Não nos esqueçamos de que temos diante de nós o veículo espiritual, por excelência vibrátil. O corpo da alma modifica-se, profundamente, se­gundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. Isso, aliás, não é novidade. Na própria Terra, a máscara física altera-se na alegria ou no sofrimen­to, na simpatia ou na aversão. Em nosso plano, semelhantes transformações são mais rápidas e exteriorizam aspectos íntimos do ser, com facilida­de e segurança, porque as moléculas do perispírito giram em mais alto padrão vibratório, com movi­mentos mais intensivos que as moléculas do corpo carnal. A consciência, por fulcro anímico, expres­sa-se, desse modo, na matéria sutil com poderes plásticos mais avançados.

Clarêncio relanceou o olhar pelo recinto e acres­centou:

— Entretanto, não nos descuidemos do serviço a fazer.

Nesse ínterim, Leonardo soerguera-se.

Parecia animado de estranha energia.

O corpo, não obstante continuar obscuro e pas­toso, revelava-se desempenado.

Repentinamente refeito, vigoroso e móbil, cla­mou:

— Lola! Lola! estás aqui? Sinto-te a presen­ça... Onde te ocultas? Ouve-me! ouve-me!

Com inexprimível espanto, vimos dona Anto­nina escapar do aposento, no corpo espiritual com que a divisáramos na véspera.

Avançou ao nosso encontro, extremamente sur­preendida, e, avistando o avô transfigurado, como se fosse tangida no imo da personalidade por mis­teriosa influência, estampou súbita alteração facial, renovando-se igualmente aos nossos olhos.

As linhas do semblante modificaram-se, de ino­pino, e vimo-la realmente mais bela, todavia, me­nos serena e menos espiritualmente.

Favorecendo-nos o máximo proveito nas obser­vações, o Ministro falou em voz baixa:

— Nossa irmã exige tão somente leve auxílio magnético para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade anormal do reencontro para cair na posição vibra­tória do passado, de vez que ainda não se encontra quitada com a Lei.

Aterrada, Antonina rojou-se de joelhos aos pés do ancião que se rejuvenescera ao influxo dos pas­ses de Clarêncio e gritou:

— Leonardo! Leonardo!

Ele, porém, irradiando no olhar ódio e pade­cimento intraduzíveis bradou:

- Enfim!... Enfim!

E prorrompeu em pranto Convulso

Estupefatos Ouvimos Clarêncío que nos infor­mava, generoso:

- Repararam? Antonina é Lola Ibarruri reen­carnada. Leonardo está vinculado a ela por laços de imenso amor. Ambos procedem de lutas enor­mes, na teia infinita do tempo. A mulher irresponsável de ontem, hoje é mãe amorosa e digna, à pro­cura da própria regeneração. Tendo abandonado outrora o marido, foi induzida a desposar um ho­mem animalizado, com quem se encontra igualmente enleada por laços do pretérito e que, em não a entendendo agora, relegou-a ao esquecimento. Rece­beu, contudo, antigos associados de destino por fi­lhos do coração, que conduz para o bem. Em contra-posição às facilidades delituosas do passado, atra­vessa atualmente aflitivos obstáculos para viver.

Simpatia incoercível inclinou-nos para aquela mulher em provas tão ríspidas.

O ensinamento que a vida ali nos ofertava era efetivamente sublime.

A voz do orientador, no entanto, era clara e segura a recomendar:
— Ajudemos. O momento determina auxiliar.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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