segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

RECUANDO NO TEMPO

Depois do nosso esforço de autocondensação, para o necessário ajuste vibratório, Clarêncio abei­rou-se dos dois amigos, com o amoroso poder que lhe era característico e, em nos reconhecendo, Má­rio associou-nos a presença ao pesadelo da véspera e passou a clamar:

— Meu caso não é com a polícia!... não pre­cisamos de qualquer delegado aqui!...

— Acalma-te, amigo! — respondeu o Ministro, atencioso. — Não somos quem julgas. Estamos aqui para que te lembres... É indispensável te recordes.

E, situando a destra na fronte do enfermeiro, reparamos que Mário Silva aquietava-se, de repente.

O semblante dele acusou estranha metamor­fose.

Afigurou-se-nos mais elegante, mais jovem.

Abriu desmesuradamente os olhos, depois de alguns momentos, e exclamou, semi-aterrado:

— Ah! agora!... agora me lembro!... Meu agressor de ontem é Leonardo Pires... Como po­deria esquecê-lo assim tão infantilmente? como não rememorar? Disputávamos a mesma mulher... Achávamo-nos em Luque, quando conheci a can­tora e bailarina admirável... Lola Ibarruri! Quem senão ela poderia oferecer-me o bálsamo do esque­cimento? Realmente fiz tudo para separá-los...

Ele não era o tipo de homem capaz de fazê-la feliz! Lola trazia consigo a beleza, a juventude e a arte reunidas e eu carregava no peito o esquife dos sonhos mortos... Deu-me o repouso de que minh'alma necessitava... restaurou-me. Mas... que domingo terrível aquele da praça embandeirada, em Piraju!... Deslocavam-se as forças para a caça ao inimigo... Imaginava, porém, a melhor maneira de reencontrar a mulher querida e, naquela manhã de terrível memória, consegui a simpatia de Frei Fidélis, antes da missa... O caridoso capuchinho auxiliar-me-ia, advogando-me a causa... Lola não deveria movimentar-se, entretanto, poderia, por mi­nha vez, tornar à retaguarda!... Os maiorais eram meus amigos!... Obteria, por isso, o favor do Príncipe!... Arquitetava meus planos, quando en­contrei Leonardo... Não supunha conhecesse ele a deserção da companheira e procurei agradá-lo, aceitando-lhe a companhia... O suculento repasto exigia algum trago de vinho e Pires não hesitou, ministrando-me o veneno que trazia às ocultas!... Ah! bandido! bandido!...

Mário levou as mãos à garganta, como se registrasse enorme sofrimento e caiu, desamparado, gemendo de dor.

O Ministro, paciente, aplicou-lhe recursos mag­néticos balsamizantes e o rapaz levantou-se, atur­dido.

Amaro, que se mostrava igualmente transtor­nado, acompanhava a cena com manifesta aflição.

Clarêncio ajudou o enfermeiro a firmar-se de novo sobre os pés e perguntou, concitando-o a re­lembrar:

— Por que razão te afeiçoaste à cantora, com tamanho desvario? porque não atendeste aos avi­sos da consciência, que, decerto, te rogava não despertasses o ódio naquele que te aniquilaria o corpo físico?

Apresentando a expressão de um louco, Mário desferiu desconcertante gargalhada e bradou:

— Porque amei Lola Ibarruri? porque não tive escrúpulos em arrebatá-la ao companheiro que a retinha nos braços?

Nosso instrutor afagava-lhe a cabeça com o evidente intuito de reavivar-lhe a memória.

— Ah! sim!... — prosseguiu Mário Silva, alar­mado — ausentei-me de Assunção com o espírito irremediá
velmente desiludido...

De olhar vagueante, como se surpreendesse o passado ao longe, nos recôncavos da noite, conti­nuou:

— Nos arredores da formosa capital para­guaia, construíra minha casa e era feliz!... Lina era o tesouro de meu coração... Minha amiga e minha esposa, minha esperança e minha razão de ser...

Descendente de uma das famílias de Mato Grosso aprisionadas pelo inimigo, na invasão de dezembro de 1864, encontrei-a sem parentes, asi­lada por respeitável família, que a adotara por fi­lha estremecida!... Ah! quando lhe fitava os olhos claros e doces, sentia-me transportado a céus imen­sos... Era tudo o que a mocidade ideara de mais lindo para o meu coração... Nela encontrava a divina novidade de cada dia e, apesar das vicissitudes da guerra, mergulhávamo-nos ambos na rósea corrente dos mais belos sonhos... O próprio Marquês de Caxias conheceu-a e animou-nos a união... Foi assim que, em janeiro de 1869, quan­do a trégua nos atingira, um sacerdote consagrou-nos o casamento... O Conselheiro Paranhos pro­meteu ajudar-nos, tão logo regressássemos ao Bra­sil, para que o nosso consórcio fosse devidamente festejado... Vivíamos tranquilos, como duas aves entrelaçadas no mesmo ninho, quando tive a des­graça de levar ao nosso templo doméstico dois companheiros de trabalho e de ideal... Armando e Júlio... Sim, seriam eles amigos ou abutres?

Sei apenas que Lina e eles se fizeram íntimos em pouco tempo... Com a desculpa de aliviarem os sofrimentos da campanha, os dois passaram a gastar, em nosso pequeno santuário de ventura, todo o tempo que lhes era disponível. Descansava mi­nhalma na confiança sincera, até que um dia...

O semblante do narrador alterou-se, de súbito.

Esgares de amargura modificaram-lhe a feição.

Imprimindo à voz lúgubre acento, continuou, atormentado:

— Até que, um dia, encontrei Lina e Júlio abraçados um ao outro, como se o tálamo conju­gal lhes pertencesse.

Cravou em nós o olhar agora coruscante e terrível e acrescentou:

— Compreenderão, acaso, a dor do homem que se vê irremissivelmente atraiçoado pela mulher em que se apóia para viver? Entenderão o incêndio que lavra no espírito flagelado de quem, num mi­nuto, vê destruidas as esperanças da vida intei­ra?... Tudo é treva para quem carrega consigo mesmo o carvão dos enganos mortos! Não quis acreditar no que via e interpelei a mulher ama­da... Lina, porém, atirou-me em rosto o mais frio desprezo... Afirmou, rudemente, que não podia amar-me, senão como irmã que se compadece de um companheiro necessitado, que me desposara simplesmente para fugir às humilhações que expe­rimentava numa terra estrangeira e que eu, efetivamente, deveria desaparecer... Envergonhado, in­voquei a proteção de superiores amigos e fugi de Assunção... Eu era, contudo, um homem diferen­te... A segurança de caráter que cultivava, brioso, fora abalada nos alicerces... Viciei-me... Confiei-me ao álcool e ao jogo... Do militar responsável, desci à condição de aventureiro infeliz... Foi as­sim que encontrei Lola e Leonardo e não hesitei em exterminar-lhes a felicidade... É muito difícil albergar respeito aos outros, quando fomos pelos outros desrespeitado.

Valendo-se da pausa que se evidenciava, es­pontânea, Clarêncio indagou:

— E nunca recebeste notícias da esposa?

Mário Silva, reconduzido à personalidade de Esteves pela influência magnética, exibiu sarcástico sorriso e informou:

— Lina, que passei a odiar, era demasiado cruel. Achava-me não longe de Assunção, depois de três meses sobre a mágoa terrível que me fora assacada, quando vim a saber que Júlio fora igual­mente escarnecido por ela. Certo dia, de volta ao lar, encontrou-a nos braços de Armando, o outro amigo que parecia consagrar-nos estima fraternal. Menos forte que eu mesmo, Júlio esqueceu-se do revés com que me dilacerara, semanas antes, e, cego de absorvente afeição, ingeriu grande dose de corrosivo... Socorrido a tempo, na caserna, con­seguiu sobreviver, mas, incapaz de suportar os ma­les corpóreos decorrentes da intoxicação, depois de alguns dias embebedou-se deliberadamente e arro­jou-se às águas do Paraguai, aniquilando-se, en­fim... Depois disso, nada mais soube. A morte aguardava-me em Piraju... O destino marcara-me, impiedoso...

Mário fixou desagradável carantonha e acen­tuou:

— Sou um poço de fel. Não posso modificar-me... Haverá paz sem justiça e haverá justiça sem vingança?

Nosso orientador ergueu a voz calmante e con­siderou, generoso:

— É necessário esquecer o mal, meu amigo. Sem aquela atitude de perdão, recomendada pelo Cristo, seremos viajores perdidos no cipoal das tre­vas de nós mesmos. Sem amor no coração, não teremos olhos para a luz.

Silva dispunha-se a responder, entretanto, Ama­ro fizera ligeiro movimento e mostrou-se-nos singu­larmente renovado. Seu veículo espiritual parecia haver regredido no tempo. Revelava-se mais leve e mais ágil e sua face impressionava pelos traços juvenis.

Buscou aproximar-se do enfermeiro num gesto natural de cordialidade, todavia, em lhe observando o rosto metamorfoseado, o antagonista bradou en­tre o ódio e a angústia:

— Armando! Armando! ... Pois és tu? O Ama­ro que hoje detesto é o mesmo Armando de ontem? onde me encontro? enlouqueci, porventura?...

Instruindo-nos, cuidadoso, Clarêncio falou, rápido:

— Não precisei despender grande esforço para que a memória de Amaro tornasse ao pretérito. O sofrimento reparador conferiu-lhe à mente e à sensibilidade recursos novos. Bastou-me tocá-lo de leve, para que aproveitasse a digressão do antigo companheiro, recuperando as recordações da época em estudo...

O esposo de Zulmira procurava estender braços amigos ao adversário que o contemplava, galvani­zado de assombro, contudo, recuando, de repente, como animal ferido, Mário gritou em desespero:

— Não, não! não te acerques de mim! não me provoques, não me provoques!...

O Ministro, no entanto, situando-se entre os dois, pediu, comovidamente:

— Tenhamos calma! Respeitemo-nos uns aos outros!

E, dirigindo-se particularmente ao enfermeiro, determinou, sem afetação:

— Agora, é o momento de nosso amigo. Co­mentaste o pretérito à vontade. É indispensável que Amaro fale por sua vez. A justiça, em qual­quer solução, deve apreciar todas as partes inte­ressadas.

Contido pela força moral da advertência, Má­rio calou-se e, voltados então para o ferroviário, que se fizera mais simpático pela serenidade de que se investira, continuamos à escuta.




Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.


Nenhum comentário: