sábado, 25 de janeiro de 2014

ALÉM DO SONO

Tornando à Esteves, Clarêncio ofereceu-lhe o braço amigo, mas o moço prorrompeu em súplica:

— Não me prendam! não me prendam! Sou a vítima!...

O Ministro absteve-se de continuar em sua afe­tiva manifestação.

No passo vagaroso de quem carrega um fardo de aflição, o inimigo de Leonardo retirou-se para a via pública, regressando ao aconchego doméstico.

Seguimo-lo a pequena distância.

Renovava-se o dia.

Pedestres marchavam diligentes, na direção do trabalho.

Bondes rangiam, sonolentos, e os autos, aqui e ali, começavam a transitar pelas ruas.

Em breve tempo, o rapaz, seguido de nosso grupo, estacionou à frente de vasto conjunto residencial.

Grande relógio próximo exibia o mostrador.

Cinco horas e trinta minutos.

Embatucado, o moço voltou-se para nós, e, em seguida, desapareceu no interior.

Entramos.

Em momentos rápidos, achavamo-nos diante dele, que se esforçava por reaver o corpo físico.

O Ministro, sem molestá-lo, amparou-o afetuo­samente, e Esteves, pouco a pouco, recuperou a calma natural.

Mantinha-se em suave modorra, quando o des­pertador tilintou, faltando quinze minutos para seis.

O rapaz esfregou os olhos, de carantonha amar­rada, guardando a impressão de mau sonho.

Vestindo-se, apressado, notamos que minúsculo cartão de visita lhe caiu do bolso, ensejando-nos a leitura de um nome: — «Mário Silva, Enfer­meiro».

E o nosso instrutor reafirmou:

— Nosso amigo, ontem Esteves, hoje é Mário Silva, prosseguindo em sua vocação para a enfer­magem. Ouçamo-lo por alguns momentos.

O moço atendeu às obrigações da higiene e, logo após, foi recebido em pequena sala do aparta­mento por simpática velhinha, em cujo olhar adi­vinhamos a ternura de mãe.

Depois de saudação carinhosa, a senhora in­dagou bem humorada:

— Onde esteve esta noite, meu filho? Seu sem­blante carregado não me engana.

— Um sonho horrível, mamãe.

E fixando gestos expressivos, entre os goles do café notificou:

— Sonhei que alguém me chamava, a distân­cia, em voz alta, e, acreditando tratar-se de algum doente em estado grave, não vacilei. Corri ao ape­lo, mas, ao invés de topar um quarto de enfer­mo, vi-me, de imediato, numa cela mal iluminada e úmida...

E, com os recursos de imaginação de que dis­punha para corresponder às requisições da mente, o rapaz continuou:

- Era um perfeito cubículo de prisão, onde me surpreendi encarcerado, de repente, junto de um criminoso de mau aspecto e de infortunada mu­lher em pranto... Senti tanta simpatia pela moça desventurada, quanta aversão pelo réu de medonha catadura. Tive, porém, a impressão nítida de que nos conhecíamos. Um misto de ódio e sofrimen­to me tomou de assalto, junto deles, principalmen­te ao lado do infeliz, cujo olhar se me afigurava cruel... Perguntava, a mim mesmo, Porque me não retirava de tão detestável presença, mas, enquanto o homem me repelía, a mulher me provocava o maior enternecimento... Por mais estranho que pareça, experimentava o desejo de agredí-lo e de acariciá-la, ao mesmo tempo. Achava-me em expec­tativa, quando o criminoso avançou para mim, com o propósito evidente de liquidar-me, ao passo que a pobrezinha procurava defender-me. Estava atô­nito, ignorando se o condenado pretendia assassínar-me ali mesmo quando tentei uma reação à altura! Cego de incompreensível rancor, ia preci­pitar-me sobre ele, quando, rápido, apareceu um delegado policial, seguido de dois guardas que en­traram na contenda, impedindo-nos o mau impulso. O chefe, segundo percebi, de um só golpe conte­ve o meu agressor, obrigando-o a sentar-se, vencido, conquistando-me um respeito tão grande que, real­mente, apesar do desejo de ouvir a mulher ajoe­lhada, em soluços não arredei pé do lugar em que me apoiava. Depois de palavras enérgicas e rápi­das, o delegado trouxe, então, à cela outros aju­dantes que arrastaram meu adversário para fora... Logo após, acomodando-me numa velha cadeira, reconduziu a jovem para o interior do cárcere...

Estampou na fisionomia a expressão de quem se propunha inütilmente lembrar-se e, decorridos longos instantes de reticência, rematou:

— Depois... depois, não consigo precisar as recordações .. Sei apenas que me pus a correr, em fuga para nossa casa, de vez que os policiais se mostravam igualmente dispostos a recolher-me. Temendo o xadrez, acordei estremunhado e abatido...

A velhinha que escutava atenciosa, comentou calma:

— Há Sonhos que valem por terríveis pesa­delos...

— É o que senti — concordou Mário, preo­cupado.

A mãezinha contemplou-o, bondosa, e acres­centou:

— Meu filho, o sonho terá alguma relação com a nossa Zulmira? A mulher com quem simpatizou não seria, acaso, nossa velha amiga, e o homem que lhe inspirou tanta repugnância não poderia ser interpretado como sendo o esposo dela?

O rapaz cobriu-se de leve palidez, mostrou-se mais taciturno e falou, triste:

— Quem sabe?

— Você nunca mais teve notícia de nossa an­tiga companheira?

— Não. Tenho apenas a informação de que mora aqui mesmo, onde o marido é ferroviário de importância.

— Nunca pude entender-lhe a atitude. Tantos anos de convivência, tantos projetos de felicidade!... Trocar tudo, assim, por um viúvo, acompanhado de dois filhos!...

O moço fixou um gesto de amargura e ob­servou:

— Ora, mamãe, evitemos recordações sem pro­veito. Zulmira não deve reaparecer em minha me­mória e esse Amaro que ela desposou é um ponto negro em meu coração. Creio que o melhor senti­mento para eles dois em minha vida íntima é o ódio com que os reúno em minha lembrança.

Não desejo revê-los e, francamente, se eu soubesse que residiam aqui, em nossa vizinhança, decidiria nos­sa transferência para outro rumo...

E, transcorridos alguns instantes, ajuntou:

— Meu sonho foi um simples pesadelo. Algu­ma preocupação imprecisa ou alguma intoxicação alimentar...

A senhora sorriu, desapontada, e aduziu:

— Cá por mim, estou certa de que, à noite, reencontramos as pessoas que amamos ou detesta­mos. Nosso Espírito, no sono, procura os afetos ou os desafetos do caminho para acertar as próprias contas. Disso, não tenho qualquer dúvida.

O filho, indiscutivelmente enfadado, reergueu-se, abraçou a genitora, osculou-lhe a cabeça bran­ca e concluiu:

O relógio é inflexível. O sonho passou e, agora, é a realidade que me espera. Devo cooperar no serviço operatório de duas crianças, às oito em ponto. Não me posso demorar. O hospital não cogita de pesadelos.

Mostrou um sorriso forçado e despediu-se.

A mãezinha acompanhou-o carinhosamente até à porta, retomando os serviços caseiros, pensativa...

Preparando-nos para a retirada, trazia o meu cérebro castigado por obsidiantes interrogações.

Encontráramos um novo capítulo na história da oração de Evelina?

Amaro e Zulmira, mencionados pelo enfermei­ro, seriam as mesmas personagens que havíamos visitado anteriormente?

Dispunha-me à inquirição, quando o olhar de Clarêncio cruzou com o meu. Registrando-me a es­tranheza, informou:

— Já sei o teor de tuas interrogações. Real­mente, o nosso novo amigo foi noivo de Zulmira, a senhora obsidiada que conhecemos. Pretendia desposá-la, mas foi preterido no coração dela por Amaro, que lhe deve assistência e carinho. O pas­sado fala no presente. Acham-se enredados numa teia de compromissos que lhes reclamam resgate.

— E reencontrar-se-ão para o desdobramento das lutas redentoras em que se envolvem? — per­guntou Hilário, admirado.

— Inevitávelmente — acentuou o instrutor com voz segura.

A dona da casa, mãe devotada e sensível, me­ditando no sonho do filho, embora movimentando automáticamente a vassoura, orava por ele, rogan­do a Jesus o abençoasse.

Anotávamos-lhe as reflexões na mente preo­cupada. Sabia quanto custara ao moço renunciar à mulher escolhida. Conhecia-lhe o temperamento enigmático e receava tornar a vê-lo atormentado e vencido...

O pensamento em prece escapava-lhe da ca­beça, como tênue esguicho de luz.

Clarêncio abeirou-se dela e transmitiu-lhe for­ças calmantes, que lhe sossegaram o coração.

Em seguida, o orientador no-la apresentou, generoso:

— Nossa irmã Minervina é velha conhecida. Recebeu nos braços meia dúzia de filhos que tem sabido conduzir, admiràvelmente. Coração abnega­do, alma rica de fé.

Abraçamo-la, carinhosamente, às despedidas. De regresso, reparando que estávamos desejosos de seguir Mário Silva para obter maiores in­formes, no desenvolvimento de nossa história que começava a ser fascinante, o Ministro recomendou:

— Não convém incomodar nossos amigos no curso das obrigações diuturnas, provocando eluci­dações que seriam desagradáveis e fora de ocasião. Aguardemos a noite, porque enquanto o corpo fí­sico se refaz a alma invariavelmente procura o lu­gar ou o objeto a que imanta o coração.

Ouvimos o orientador e aquietamo-nos.

Cabia-nos aguardar a noite, quando se esten­deriam as nossas experiências.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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