segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

OBSESSÃO

Penetramos o mais espaçoso aposento da casa, onde uma senhora de aspecto juvenil repousava abatida e insone.

Moça de vinte e cinco anos, aproximadamente, mostrava no semblante torturado harmoniosa be­leza. O rosto delicado parecia haver saido de uma tela preciosa, todavia, com a suavidade das linhas fisionômicas contrastavam a inquietação e o pavor dos olhos escuros e o abandono dos cabelos em desalinho.

Ao lado dela, descansava outra mulher, sem o veículo físico.

Recostada num travesseiro de grandes dimen­sões, dava a idéia de proteger a moça indiscutivelmente enferma, contudo, a vaguidão do olhar e o halo obscuro de que se cercava, não nos deixa­vam dúvida quanto à sua posição de desequilíbrio interior. Conservava a destra sobre a medula alon­gada da senhora vencida e doente, como se qui­sesse controlar-lhe as impressões nervosas, e fios cinzentos que lhe fluíam da cabeça, à maneira de tentáculos dum polvo, envolviam-lhe o centro co­ronário, obliterando-lhe os núcleos de força.

Indiferentes ambas à nossa presença, foi pos­sível observá-las atentamente, identificando-se-lhes a posição de verdugo e de vítima.

Arrancando-nos da indagação silenciosa em que nos demorávamos, Clarêncio explicou:

— A jovem senhora é Zulmira, a segunda orientadora deste lar, e a irmã desencarnada que presentemente lhe vampiriza o corpo é Odila, a primeira esposa de Amaro e mãezinha de Evelina, dolorosamente transfigurada pelo ciúme a que se recolheu. Empenhada em combater aquela que con­sidera inimiga, imanta-se a ela, através do veículo perispirítico, na região cerebral, dominando a com­plicada rede de estímulos nervosos e influenciando os centros metabólicos, com o que lhe altera pro­fundamente a paisagem orgânica.

— Mas, porque não há reação por parte da perseguida? — inquiri, perplexo.

— Porque Zulmira, a nossa amiga encarnada, caiu no mesmo padrão vibratório — aclarou o ins­trutor. — Ela também se devotou ao marido com egoísmo aviltante. Amaro sempre foi pai afetuosís­simo. O matrimônio anterior deixou-lhe um casal de filhinhos, mas o pequeno Júlio, formosa crian­ça de oito anos, perdeu a existência no mar. A segunda mulher nunca suportou, sem mágoa, o carinho do genitor para com os órfãos de mãe. Revoltava-se, choramingava e doía-se constante­mente, diante das menores manifestações de ter­nura paternal, entrelaçando-se, por isso mesmo, com as desvairadas energias da irresignada com­panheira de Amaro, arrebatada pela morte. Em suas preocupações doentias, Zulmira chegou a de­sejar a morte de uma das crianças.

Pretendia possuir o coração do homem amado, com absoluto exclusivismo. E porque as atenções de Amaro se concentravam particularmente sobre o menino, mui­tas vezes emitiu silenciosamente o anseio de vê-lo afogar-se na praia em que se banhavam. Certa manhã, custodiando os enteados, separou Evelina do irmão, permitindo ao petiz mais ampla incursão nas águas. O objetivo foi atingido. Uma onda rá­pida surpreendeu o miúdo banhista, arrojando-o ao fundo. Incapaz de reequilibrar-se. Júlio voltou cadaverizado à superfície. O sofrimento familiar foi enorme. O ferroviário sentiu-se psiquicamente distanciado da segunda esposa, classificando-a como relaxada e cruel com os filhinhos. Zulmira, a seu turno, acabrunhada com o acontecimento e guar­dando consigo a responsabilidade indireta pelo de­sastre havido, caiu obsidiada ante a influência perniciosa da rival que a Subjugava do plano invisível.

Clarêncio fêz ligeiro intervalo e continuou:

— O sentimento de culpa é sempre um colap­so da Consciência e, através dele, sombrias forças se insinuam... Zulmira, pelo remorso destrutivo, tombou no mesmo nível emocional de Odila e am­bas se digladíam num conflito de morte, inacessível aos Olhos humanos comuns. É um caso em que a medicina terrestre não consegue interferência.

Calara-se o Ministro.

Qual se nos registrasse a presença por intui­ção, Odila movimentou-se e, agarrando-se à pobre senhora com mais força, gritou:

— Ninguém a libertará! Sou infeliz mãe espoliada... Farei Justiça por minhas próprias mãos...

E contemplando a enferma com expressão ter­rível, acrescentava:

— Assassina! Assassina!... Mataste meu fi­lhinho! Morrerás também!...

A doente abriu desmesuradamente os olhos.

Extrema palidez cobriu-lhe a face.

Não ouvia as palavras da adversária que lhe era invisível, mas, envolta na onda magnética que a enlaçava, sentia-se morrer.

Clarêncio afagou-lhe a fronte e disse, calmo:

— Pobre moça!...

Hilário e eu, instintivamente abeiramo-nos de Odila para afastá-la com a presteza possível, mas o instrutor generoso deteve­-nos com um gesto, ad­vertindo:

— A violência não ajuda. As duas se encontram ligadas uma a outra. Separá-las à força seria a dilaceração de consequências imprevisíveis. A exasperação da mulher desencarnada pesaria demasiado sobre os centros cerebrais de Zulmira e a lipotimia poderia acarretar a paralisia ou mesmo a morte do corpo.

— Mas, então — clamou Hilário, contrafei­to —, como extinguir essa união indébita? Não será justo afastar o algoz da vítima?

Clarêncio sorriu e ponderou:

— Aqui, o quadro é diverso. Na esfera car­nal, a cápsula física é precioso isolante das energias desequilibradas de nossa mente, entretanto, em nosso plano de ação, no problema que obser­vamos, essas forças desbordam ameaçadoras sobre a infortunada mulher, cujo corpo pode ser compa­rado a uma lâmpada de fraca receptividade, sobre a qual seria perigoso arremessar uma corrente superior à capacidade de resistência a que se en­quadra. A inutilização seria completa.

— Que poderíamos fazer? — indagou Hilário, desapontado.

— Precisamos atuar na elaboração dos pen­samentos da infortunada irmã que tomou a iniciativa da perseguição. É imprescindível dar outro rumo à vontade dela, deslocando-lhe o centro men­tal e conferindo-lhe outros interesses e diferentes aspirações.

— E não podemos começar, exortando-a?

O Ministro, sereno, obtemperou sem alterar-se:

— Talvez, assim de momento, não pudéssemos ou não soubéssemos. A preparação é indispensável.

— Nada custa uma conversação de censura... — alegou meu companheiro, admirado.

— Sim, uma doutrinação pura e simples seria cabível, contudo, não podemos esquecer que a or­ganização cerebral da vítima permanece excessi­vamente martelada. Nossa intervenção no campo espiritual de Odila deve ser envolvente e segura para evitar choques e contrachoques, que repercutiriam desastrosamente sobre a outra. Nem doçura prejudicial, nem energia contundente...

O instrutor dirigiu piedoso olhar às duas mu­lheres e prosseguiu:

— A questão nesta casa surge realmente me­lindrosa. É necessário buscar alguém que já tenha amealhado na alma bastante amor e bastante en­tendimento para conversar com o poder criador da renovação.

Refletiu alguns instantes e aduziu:

— Contamos em nossas relações com a irmã Clara. Rogaremos o concurso dela. Modificará Odila com o seu verbo coroado de luz, inclinando-a ao serviço da conversão própria. Por agora, de nossa parte, somente nos é possível a dispensação de algum alívio e nada mais.

Recomendou a Eulália assistisse Evelina para o refazimento psíquico de que a menina necessita­va e, em seguida, aplicou recursos magnéticos so­bre Zulmira, em passes calmantes, de longo curso.

Qual se fosse brandamente anestesiada, a en­ferma passou da irritação à serenidade e pareceu dormir aos olhos do esposo que chegara, de man­sinho, acomodando-lhe os travesseiros.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

Nenhum comentário: