segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRECIOSA CONVERSAÇÃO

Blandina, que parecia bastante versada nas questões da infância, associando-se à conversação que Clarêncio desenvolvia, considerou, com inte­resse:

— Efetivamente, a Lei é invariável, contudo, a criança desencarnada muitas vezes é problema aflitivo. Quase sempre dispõe de afeiçoados que a seguem, de perto, amparando-lhe o destino, entre­tanto tenho observado milhares de meninos que, pela natureza das provações em que se envolveram, sofrem muitíssimo, à espera de oportunidades fa­voráveis para a aquisição dos valores de que ne­cessitam.

E sorrindo, bondosa, acrescentou:

— O caso de Júlio não é para mim dos mais dolorosos. Tenho visitado departamentos de reajus­te em que se demoram irmãos nossos, arrancados à carne, violentamente, como frutos verdes da ár­vore em que se desenvolvem... Processos de mente enfermiça que só abençoadas estações regenerati­vas na carne conseguem curar...

Poderíamos receber de sua experiência al­guns exemplos objetivos? — indagou Hilário, curioso.

— Ah! são muitos!... — ponderou a nossa interlocutora, gentil — temos para demonstração mais prática os absurdos da megalomania intelec­tual. Há pessoas, na Terra, que não se acautelam contra os desvarios da inteligência e fazem da astúcia e da vaidade o clima em que respiram. Insis­tem na inércia do coração, abominam o sentimento elevado que interpretam por pieguismo e transfor­mam a cabeça num laboratório de perversão dos valores da vida. Não cuidam senão dos próprios interesses, não amam senão a si mesmos. Não per­cebem, contudo, que se ressecam interiormente e nem imaginam os resultados cruéis da cerebração para o mal.

Frequentemente, na luta mundana, avultam na condição de dominadores poderosos, com vastissimo potencial de influência sobre ami­gos e adversários, conhecidos e desconhecidos. Mas, esse êxito é ilusório. Caem sob o guante da morte com grande alívio dos contemporâneos e passam a receber-lhes as vibrações de repulsa. Semelhan­tes criaturas naturalmente são vítimas de si mes­mas e sofrem os mais complicados desequilíbrios mentais. Depois de períodos mais ou menos longos de purgação, após a transição da morte, voltam à carne, necessitados de silêncio e solidão para se desvencilharem dos envoltórios inferiores em que se enredaram, assim como a semente precisa do isolamento na cova escura para desintegrar os ele­mentos pesados que a constringem, para novo de­sabrochar.

A moça esboçou inteligente sorriso e conti­nuou:

— Imaginemos que a terra se recusasse a auxiliar as sementes que esperam reviver, O solo expulsá-las-ia, e, em vez dos germens libertados para a vitória da plantação, teríamos tão somente pevides secas, em aflitiva inquietude, desorientan­do a lavoura. Em verdade, a maioria das mães é constituída por sublime falange de almas nas mais belas experiências de amor e sacrifício, carinho e renúncia, dispostas a sofrer e a morrer pelo bem-estar dos rebentos que a Providência Divina lhes confiou às mãos ternas e devotadas, contudo, há mulheres cujo coração ainda se encontra em plena sombra. Mais fêmeas que mães, jazem obcecadas pela idéia do prazer e da posse e, despreocupando-se dos filhinhos, lhes favorecem a morte, O in­fanticídio inconsciente e indireto é largamente pra­ticado no mundo. E como o débito reclama resgate, as delongas na solução dos compromissos assumi­dos acarretam enormes padecimentos nas criaturas que se submetem aos choques biológicos da reen­carnação e vêem prejudicadas as suas esperanças de quitação com a Lei.

Ante a pausa que se fizera natural, Inquiri:

— Mas a Lei não traçará princípios inamo­víveis? Pretenderá a irmã dizer que uma criança pode desencarnar, fora do dia indicado para a sua libertação?

— Sim, sem dúvida — atalhou o Ministro, que nos escutava —, há um programa estruturado na Espiritualidade para as nossas tarefas humanas, entretanto, pertence-nos a condução dos próprios impulsos dentro delas. Em regra geral, multidões de criaturas cedo se afastam do veículo carnal, atendendo a serviços de socorro e sublimação, mas, em numerosas circunstâncias a negligência e a ir­reflexão dos pais são responsáveis pelo fracasso dos filhinhos.

— Aqui — explicou Blandina, delicada —, re­cebemos muitas solicitações de assistência, a bene­fício de pequeninos ameaçados de frustração. Te­mos irmãs que por nutrirem pensamentos infelizes envenenam o leite materno, comprometendo a es­tabilidade orgânica dos recém-natos’ vemos casais que, através de rixas incessantes, projetam raios magnéticos de natureza mortal sobre os filhinhos tenros, arruinando-lhes a saúde, e encontramos mu­lheres invigilantes que confiam o lar a pessoas ainda animalizadas, que, à cata de satisfações doen­tias, não se envergonham de ministrar hipnóticos a entezinhos frágeis, que reclamam desvelado ca­rinho... Em algumas ocasiões, conseguimos res­tabelecer a harmonia, com a recuperação desejável, no entanto, muitas vezes somos constrangidas a assistir ao malogro de nossos melhores propósitos.

— Nesses casos... — interferi, buscando maio­res esclarecimentos.

Blandina, porém, percebendo-me a indagação íntima, adiantou:

— Nesses casos, ainda e sempre, a Lei é inva­riável. As provas e tarefas sofrem dilação no tem­po, mas serão cumpridas, afinal. Aquilo que não se realiza num século, pode efetuar-se em outro. Nossa boa vontade e nossa aplicação aos Desígnios Divinos podem abreviar qualquer espécie de servi­ço. Quem persiste na direção do bem, mais cedo atinge a vitória.

E com o formoso sorriso que lhe bailava no semblante juvenil, acrescentou:

- Não vale fugir às responsabilidades, por­que o tempo é inflexível e porque o trabalho que nos compete não será transferido a ninguém.

Hilário, que acompanhava a conversação com extremo interesse, considerou:

— Antigamente, na Terra, conforme a teolo­gia clássica, supúnhamos que os inocentes, depois da morte, permaneciam recolhidos ao descanso do limbo, sem a glória do Céu e sem o tormento do inferno, e, nos últimos tempos, com as novas con­cepções do Espiritualismo, acreditávamos que o me­nino desencarnado retomasse, de imediato, a sua personalidade de adulto...

Em muitas situações, é o que acontece —esclareceu Blandina, afetuosa —; quando o Espíri­to já alcançou elevada classe evolutiva, assumindo o comando mental de si mesmo, adquire o poder de fàcilmente desprender-se das imposições da forma, superando as dificuldades da desencarnação prema­tura. Conhecemos grandes almas que renasceram na Terra por brevíssimo prazo, simplesmente com o objetivo de acordar corações queridos para a aquisição de valores morais, recobrando, logo após o serviço levado a efeito, a respectiva apresen­tação que lhes era costumeira. Contudo, para a grande maioria das crianças que desencarnam, o caminho não é o mesmo. Almas ainda encarcera­das no automatismo inconsciente, acham-se relati­vamente longe do auto-governo. Jazem conduzidas pela Natureza, à maneira das Criancinhas no colo maternal. Não sabem desatar os laços que as aprisionam aos rígidos princípios que orientam o mun­do das formas e, por isso, exigem tempo para se renovarem no justo desenvolvimento. É por esse motivo que não podemos prescindir dos períodos de recuperação para quem se afasta do veículo fí­sico, na fase infantil, de vez que, depois do con­flito biológico da reencarnação ou da desencarnação, para quantos se acham nos primeiros degraus da conquista de poder mental, o tempo deve fun­cionar como elemento indispensável de restauração. E a variação desse tempo dependerá da aplicação pessoal do aprendiz à aquisição de luz interior, através do próprio aperfeiçoamento moral.

Encantávamos as exposições claras e simples de nossa interlocutora, cuja palavra tangia com tanta felicidade os graves problemas da vida.

Em suas fórmulas verbais singelas e acessí­veis, penetrávamos inquietantes enigmas da puericultura.

Blandina sabia associar a compreensão e a graça, instruindo-nos com discernimento.

Comovido, diante das anotações que lhe defi­niam a valiosa Posição cultural, Ponderei:

— Usando semelhantes apontamentos, podemos entender com mais segurança, os processos dolo­rosos das enfermidades congênitas e das moléstias insidiosas que assaltam a meninice no mundo. Sem­pre fui Possuído de aflitivo assombro, à frente do mongolismo e da epilepsia, da encefalite letárgica e da meningite, da lepra e do câncer, na tenra organização infantil.

— E que dizer dos desastres irremediáveis —considerou Hilário, com emoção —, dos desastres que arrebatam adoráveis flores do lar, deixando inconsoláveis pais e mães?
Por vezes numerosas, procurei resposta às terríveis inquirições que nos atormentam, perante corpinhos dilacerados, nos hos­pitais de sangue, sem conseguir ausentar-me do es­curo labirinto.

— Sim — esclareceu a enfermeira, bondosa -, as reparações nos martirizam na carne, mas, sem elas, não atingiríamos o próprio reajustamento.

— Cada qual de nós renasce na Terra — apre­ciou o Ministro — a exprimir na matéria densa o patrimônio de bens ou males que incorporamos aos tecidos sutis da alma. A patogenia, na essência, envolve estudos que remontam ao corpo espi­ritual, para que não seja um quadro de conclusões falhas ou de todo irreais. Voltando à Terra, atraí­mos os acontecimentos agradáveis ou desagradá­veis, segundo os títulos de trabalho que já con­quistamos ou conforme as nossas necessidades de redenção.

Bem humorado, acentuou:

— A carne, de certo modo, em muitas circuns­tâncias não é apenas um vaso divino para o cres­cimento de nossas potencialidades, mas também uma espécie de carvão milagroso, absorvendo-nos os tóxicos e resíduos de sombra que trazemos no corpo substancial.

Reparei, então, com mais insistência, a figura suave de Blandina. Porque se dedicara ela, assim, a trabalhos tão complexos? Não seria mais justo ouvir aquela conversação dos lábios da simpática Mariana, que ali se achava, junto de nós, em sua posição de matrona respeitável?

Externei os meus pensamentos, perguntando, com discrição à jovem, o porque da grave tarefa de que se incumbia.

Blandina apagou a luz do sorriso que lhe ador­nava o semblante, como flor aberta que se fechas­se, de súbito.

Pesado silêncio pairou no recinto.

Mas, generosa e simples, adoçou a expressão fisionômica e falou, quase conselheiral:

- Fui casada em minha última existência e somente há três anos terrestres me vejo, de novo, na vida espiritual. Não pude acariciar um filhinho, em meus sonhos recentes de mulher, mas hoje sei que preciso reeducar-me no amor de mãe, consoan­te os débitos que contraí no passado. Realmente, sinto grande afeição pelas crianças, Contudo, tenho igualmente enormes dívidas morais para com elas...

O assunto descambava para um círculo parti­cular, que devia ser sagrado aos nossos olhos.

Por isso mesmo, Clarêncio fêz mudo sinal para mim e a conversação foi canalizada para outro rumo.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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