sábado, 8 de fevereiro de 2014

REERGUIMENTO MORAL

Consoante o programa traçado, regressamos, no dia imediato, estagiando primeiramente no lar de Zulmira, cuja posição orgânica era mais aflitiva.
A pobre senhora mostrava-se mais pálida, mais abatida.
O médico cercara-a de drogas valiosas, entre­tanto, a infortunada criatura demorava-se em pro­funda exaustão.
Amaro e Evelina desvelavam-se, preocupados, todavia, a torturada mãezinha deixava-se morrer.
Diante da nossa apreensão manifesta, o Mi­nistro apenas afirmou:
—. Aguardemos. Numa equipe, quase sempre a melhora de um companheiro pode auxiliar a me­lhora de outro. A recuperação de Silva, ao que me parece, influenciará nossa amiga, na defesa contra a morte.
Não se delongou por muito tempo na inter­venção magnética.
Sem detença, procuramos o domicilio do en­fermeiro, encontrando-o superexcitado quanto na véspera, mas abnegadamente assistido pelas freiras que persistiam, dedicadas, na oração.
As religiosas desencarnadas acolheram-nos com carinho, comunicando que o doente prosseguia em desespero.
Clarêncio, contudo, assegurou-lhes otimista que Mário passaria conosco e, após entreter-se, vol­taria melhor.
Em seguida, abeirou-se do enfermo e, tocan­do-lhe a fronte com a destra, orou sem alarde.
Qual se recebesse preciosa transfusão de for­ças fluídicas, Silva aquietou-se como por encanto.
Revelou-se mais calmo, não obstante entris­tecido.
A expressão facial que lhe denunciava a su­blevação interior transformou-se-lhe no semblante em dolorosa serenidade.
Nosso orientador desenvolveu alguns passes de auxílio e notificou:
— Silva experimenta enorme necessidade de ouvir a palavra de Antonina, contudo, está hesitante. Afirma-se íntimamente envergonhado. Crê-se responsável pela morte da criança e teme o contacto com a nobreza espiritual de nossa irmã, apesar de sentir-se arrastado para ela - Buscaremos, porém, auxiliar-lhes a reaproximação.
Acariciou a fronte do moço atormentado e acentuou:
— O desabafo descarregar-lhe-á a atmosfera mental, favorecendo-lhe o alívio e a recepção de elementos renovadores.
Em seguida, o instrutor abraçou-o, envolven­do-o em amorosa solicitude - Aquele amplexo afe­tuoso e longo figurou-se-nos um apelo às energias recônditas do rapaz que, de imediato, levantou-se e vestiu-se.
Ignorando como explicar a si mesmo a súbita resolução que o movia, desceu para a rua, segui­do de perto por nosso cuidado, e tomou o carro que o transportaria até à residência da simpática família que o acolhera carinhosamente na ante­véspera.
Antonina e os filhos abriram-lhe os braços, alegremente.
A pequena Lisbela, encantada, dependurou-se-lhe ao pescoço, depois de um beijo comovente.
Achava-se ainda acamada, mas refeita e feliz.
Qual se convivesse com Mário, de longo tempo, a dona da casa fitou-o, apreensiva.
Preocupada, anotou-lhe o abatimento, enquan­to o hóspede parecia esmolar-lhe, em silêncio, aju­da e compreensão.
Percebendo-lhe a angústia oculta, a jovem viú­va induziu-o à conversação particular, em singelo recanto da sala, onde atendia com os filhinhos ao culto da oração.
O enfermeiro pediu-lhe desculpas por tratar de assunto pessoal e, começando por justificar a sua ausência na véspera, de frase a frase entrou na faixa dolorosa do próprio coração, desabafando...
Lembrou que ali, junto dela, recebera ensina­mentos da mais elevada significação para ele e, por esse motivo, não vacilava em descerrar-lhe o espírito desolado, implorando compaixão e socorro.
Tentando confortá-lo, a interlocutora escutou-lhe a narrativa até ao fim.
Mário reportou-se à juventude, comentou os problemas psíquicos de que se via rodeado, desde a infância, descreveu-lhe o amor que nutrira pela moça que o abandonara em pleno sonho, relacionou as provas que lhe haviam castigado o brio de ra­paz, salientou o esforço que despendera para re­cuperar-se e, por fim, extremamente conturbado, explanou sobre o reencontro com a ex-noiva e com o ex-rival, junto do pequenino agonizante... Refe­riu-se ao ódio inexplicável que sentira pelo anjinho moribundo, encareceu os benefícios do culto evan­gélico em sua alma incendiada de revolta e amar­gura, expondo-lhe a convicção de haver contribuído para à morte da criancinha que detestara, à pri­meira vista..
Guardava a impressão de haver descido a tor­mentoso inferno moral.
Antonina sentiu por ele a piedade amorosa com que as mães se dispõem ao soerguimento espiritual dos filhos sofredores e rogou-lhe serenidade.
Silva, contudo, em pranto convulsivo, era um doente que reclamava mais ampla intervenção.
Atraída irresistivelmente para ele, a nobre amiga­ deixou de sublinhar o tratamento com a palavra “senhor” e, fazendo-se mais Íntima, obtemperou, carinhosa:
— Mário, quando caímos é preciso que nos levantemos, a fim de que o carro da vida, em seu movimento incessante, não nos esmague. Conhece­mo-nos há dois dias, no entanto, sinto que profun­dos laços de fraternidade nos reúnem. Não acre­dito estejamos aqui juntos, obedecendo a simples acaso. Decerto, as forças que nos dirigem a exis­tência impelem-nos aos testemunhos afetivos desta hora. Enxugue as lágrimas para que possamos ver o caminho... Compreendo o seu drama de homem rudemente provado na forja da vida, entretanto, se posso pedir-lhe alguma coisa, rogar-lhe-ia bom ânimo.
Fixando-o com mais doçura no olhar, prosse­guiu, depois de leve pausa:
— Também eu tenho lutado muito. Lutado e sofrido. Casei-me por amor e vi-me espoliada em minhas melhores esperanças. Meu marido, antes de encontrar a morte, relegou-nos a dolorosa pe­núria. Quando mais intensa era a nossa agonia doméstica, vi um filhinho morrer ao toque das aflitivas provações que nos flagelavam a casa... Gra­ças a Deus, todavia, reconheço que seríamos tão somente ignorância e miséria sem o auxílio da dor. O sofrimento é uma espécie de fogo invisível, plasmando-nos o caráter. Não se deixe abater, assim. Você está moço e as suas realizações no mundo podem ser as mais elevadas...
— Mas estou certo de que sou um assassi­no!... — soluçou o rapaz, desacorçoado.
— Quem poderia confirmá-lo? — exclamou An­tonina, com mais ternura na voz. — É indispen­sável recordemos que, atento à profissão, atendeu você a um menino completamente entregue ao domínio do crupe. O pequenino Júlio, à sua chegada, já estaria ofegante, sob as asas da morte.
— Mas, e a impressão? e o remorso? Sinto-me derrotado, aflito... Tenho medo de mim mesmo...
A nobre senhora fitou o hóspede com a ad­mirável segurança que lhe era peculiar e falou, firme:
— Mário, você acredita na reencarnação da alma?
E porque o interlocutor a contemplasse, com estranheza, continuou sem ouvir-lhe a resposta:
— Todos somos viajores no grande caminho da eternidade, O corpo de carne é uma oficina em que nossa alma trabalha, tecendo os fios do pró­prio destino. Estamos chegando de longe, a revi­vescer dos séculos mortos, como as plantas a re­nascerem do solo profundo... Naturalmente, você, Amaro, Zulmira e Júlio estão recapitulando algu­ma tragédia que ficou distanciada no espaço e no tempo, mas viva nos corações. E, mediante o ca­rinho de sua confissão espontânea, não duvido de minha participação em algum lance da luta que motivou os acontecimentos da atualidade.
Amor e ódio não se improvisam. Resultam de nossas cons­truções espirituais nos milênios.
Provávelmente, alguma responsabilidade me compete nos serviços em cuja execução você se comprometeu. Nossa con­fiança imediata, nossa associação neste assunto sem qualquer base prévia, essa simpatia fraternal com que você vem a mim e o interesse com que lhe ouço a exposição me autorizam a admitir que o presente está refletindo o passado. E, em razão disso, ofereço-me para cooperar com o seu esforço de algum modo...
— Colaborar? — atalhou o moço, quase alu­cinado — é impossível... O menIno está morto...
Envolta nas irradiações de Clarêncio, Antoni­na alegou com sensatez:
— E quem nos diz que Júlio não possa voltar à Terra? quem nos pronunciará incapazes de algo fazer a beneficio da criancinha que partiu?
— Como? como? — indagou, atônito, o infeliz.
— Escute, Mário. O egoísmo não se revela feroz tão somente em nossas alegrias. Muitas vezes, comparece também, asfixiante e terrível, em nossas dores. Isso se verifica, quando em nossa mágoa pensamos apenas em nós. Você se decla­ra delinqüente, amargurado, vencido, qual se fosse um herói repentinamente arrojado do altar da admiração pública à poeira da desconsideração.
Admito que concentrar demasiada atenção em cul­pas imaginárias é mera vaidade a encarcerar-nos na angústia vazia. Enquanto lastimamos a nossa imperfeição, perdemos a hora que seria justo uti­lizar em nossa própria melhoria.
E, modificando a inflexão de voz, que se fêz algo mais firme, acrescentou:
— Você já meditou no padecimento dos pais feridos pela separação? já refletiu nos sonhos ma­ternos, despedaçados? porque não estender frater­nos braços aos progenitores na sombra do infortú­nio? Creio na imortalidade da alma e na redenção dos nossos erros, penso que a renovação do dia é um símbolo da graça do Senhor sempre repetida em nosso caminho, para que lhe aproveitemos o tesouro de bênçãos no crescimento ou no reajuste... Porque não visitar você o lar de nossos desven­turados amigos, nesta hora em que naturalmente precisam de carinho e solidariedade? É possível que a Divina Bondade esteja reservando ali algum serviço para o seu propósito de elevação. Quem sabe? A volta de Júlio pode efetuar-se. Para isso, porém, será necessário reerguer o ânimo materno...
Passando da energia de conselheira à ternura de irmã, aduziu, carinhosa:
— Deixaria você a outrem o privilégio de se­melhante serviço?
— Não tenho coragem! — lamentou o rapaz, chorando.
— Não, Mário! Em ocasiões dessas, não é a coragem que nos falta e sim a humildade.
Nosso orgulho neste mundo, apesar de inconsequente e vão, é por demais envolvente e excessivo. Não sa­bemos liberar a personalidade segregada no visco de nosso exagerado amor próprio. Em suma, apri­sionamos o coração na escura fortaleza da vaidade e não sabemos ceder...
Apegando-se ao socorro moral que lhe era lançado, o enfermeiro suplicou, pesaroso:
— Antonina, creio em sua amizade e na ele­vada compreensão que flui de suas palavras. Ajude-me! não vim aqui senão rogar auxílio e discer­nimento. Exponha você mesma o que devo fazer. Dê-me um plano. Perdoe-me a intimidade, tenho sido um homem sem fé... Não tenho autoridades ou amigos para quem apelar... Não nos conhece­mos senão há dias, mas encontrei em seu coração e em sua casa algo novo para meu pobre espírito... Suporte-me e ampare-me por amor de Deus, em cuja providência você crê com tanta sinceridade !...
A jovem viúva, sentindo-se verdadeiramente irmã dele, acariciou-lhe as mãos quais se fossem velhos conhecidos, e agora, igualmente em lágri­mas de emotividade e reconhecimento, convidou-o a visitarem juntos o casal sofredor, na noite se­guinte.
Confiaria Henrique e Lisbela aos cuidados de uma parenta e seguiriam para a residência de Ama­ro. em companhia de Haroldo. Desejava auxiliá-lo, a ele, Mário, na justa recuperação, e, para esse fim, estimaria acompanhá-lo, de maneira a ser mais útil.
O moço aceitou a gentileza, exultante.
Estava convencido de que, ao lado de Anto­nina, encontraria uma solução.
Um sorriso de reconforto assomou-lhe aos lá­bios e foi assim que deixamos o enfermeiro atormentado, sob a eclosão de nova e abençoada es­perança.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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