sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

EM TAREFA DE SOCORRO

Na noite do dia seguinte, fomos inesperada­mente visitados por Odila, que nos pedia socorro.
A preocupada amiga, agora ciente do drama escuro que se desenrolara no passado próximo para melhor entender as inquietudes do presente, com­preendia as necessidades de Amaro e Júlio, aos quais amava por esposo e filho do coração, e ro­gava assistência para Zulmira, novamente acamada.
Atendendo a apelos de Evelina, tornara ao ambiente doméstico para soerguer o bom ânimo daquela que a sucedera na direção do lar, e vol­tara, aflita.
Arrojara-se Zulmira a profundo abatimento.
Recusava remédio e alimentação.
Enfraquecia assustadoramente.
Sabia agora que a permanência dela no mundo e na carne se revestia de excepcional importância para o seu grupo familiar e, atenta a isso, conti­nuava intercedendo.
A rápida informação da mensageira impres­sionava e comovia pelo tom de amorosa aflição em que era vazada.
Não nos delongamos na resposta.
Era mais de meia-noite, na cidade, quando atra­vessamos a porta acolhedora da casa do ferroviário que, desde muito, constituía para nós valioso ponto de ação.
A dona da casa, de pensamento fixo nas der­radeiras cenas da morte do pequenino, jazia no leito em prostração deplorável.
Emagrecera de modo alarmante.
Fundas olheiras roxas contrastavam com a acentuada palidez do rosto desfigurado.
Recaíra na introversão em que a conhecêra­mos. Rememorava o afogamento do pequeno en­teado e, longe de saber que o retivera nos braços como filho abençoado de sua ternura, sentia-se na condição de ré infortunada no banco da justiça.
Decerto — pensava, agoniada —, sofria a pu­nição divina. Aquela morte do pequeno, quando tudo fazia crer que ele cresceria para a ventura do lar, correspondendo-lhe à expectativa, era dolorosa pena imposta ao seu maternal coração. Ah! devia ter sido pronunciada perante os juizes da Sabedoria Celeste. No mundo, ninguém lhe conhe­cia o remorso de guardiã invigilante e cruel, mas fora sem dúvida identificada pelos tribunais de mil olhos do Direito Incorruptível. Não amparara convenientemente o filhinho de Odila, relegando-o a intencional abandono... Agora, perdia inexplicavelmente o rebento que lhe definia a esperança no grande futuro. Valeria erguer-se e disputar aquilo que para ela representava a dor de viver? Reconhecia-se esmagada. O complexo de culpa re­tomara-lhe o cérebro e enfermara-lhe o coração.
Reparamos que diversos medicamentos se ali­nhavam à cabeceira, mas nosso instrutor examinou-os, auscultou a doente e informou:
— O remédio de Zulmira é daqueles que a farmácia não possui. Virá dela mesma. Precisamos refazer-lhe a esperança e o gosto de viver. Des­controlou-se-lhe, de novo, a mente. Desinteressou­-se da luta e a abstenção de alimentos acarreta-lhe a inanição progressiva.
— E o reencontro com o filhinho? — pergun­tou Hilário — não seria o melhor processo de restaurar-lhe o bom ânimo?
— É o que esperamos — concordou o Mi­nistro —‘ todavia, Júlio, na fase que atravessa, requisita, pelo menos, uma semana de absoluto re­pouso e, até lá, é indispensável entreter-lhe as energias.
Em seguida, Clarêncio entrou em ação, aplican­do-lhe recursos magnéticos, com o nosso humilde concurso.
A tensão nervosa de Zulmira, porém, atingira o apogeu e apenas conseguimos sossegá-la, de al­guma sorte, sem conduzi-la ao sono reparador que seria de desejar.
Odila, fortalecida, tomava-a aos seus cuida­dos, quando fomos defrontados por imprevisto fenômeno.
Mário Silva, desligado do corpo denso, com a rapidez de um relâmpago, penetrou o quarto, de olhos esgazeados, à maneira de louco, contemplou a doente por alguns instantes e afastou-se.
Volvemos nossa indagadora atenção para o Ministro, que esclareceu, sem detença:
— É sabido que o criminoso habitualmente volta ao local do crime. O remorso é uma força que nos algema à retaguarda.
E porque nos inclinássemos à procura do vi­sitante inesperado, o instrutor aquietou-nos, reco­mendando:
— Aguardemos. Mário voltará.
Com efeito, Silva, depois de alguns minutos, regressou ao aposento. Com a mesma expressão de dementado, fixou a pobre enferma e, dessa vez, rojou-se de joelhos, exclamando:
— Perdão! perdão!... sou um assassino! um assassino!...
Levantamo-nos, instintivamente, com o propó­sito de socorrê-lo, mas tocado de longe pela nossa influência magnética, qual se fora alcançado por um raio, o enfermeiro projetou-se para fora.
— Infortunado amigo! — falou o Ministro, contristado. — Sofre muito. Ajudemo-lo a soerguer-se.
Num átimo, ganhamos o domicílio de Mário. encontrando-o em pesadelo aflitivo, contido no lei­to à custa de poderosos anestésicos.
Com surpresa para nós, uma freira desencar­nada rezava, junto dele.
Interrompeu as preces, a fim de saudar-nos, acolhendo-nos com simpatia.
— Estava certa — disse delicada e confiante — de que Nosso Senhor nos enviaria o socorro justo. Desde algumas horas, ocupo aqui o serviço de vigilância. A posição do nosso amigo — e in­dicou Mário estendido na cama — é francamente anormal e temo a intromissão de Espíritos dia­bólicos.
Clarêncio assumiu o aspecto de simples visi­tante, vulgarizando-se ao olhar da religiosa, que se sentia evidentemente encorajada com a nossa presença.
— É enfermeira? — perguntou nosso instru­tor, cortês.
— Não sou própriamente do serviço de saúde replicou a interpelada —, mas colaboro no hos­pital onde Silva trabalha.
Fitou o moço semi-adormecido e aduziu, pie­dosa:
— É um cooperador devotado às crianças doentes e a cuja assiduidade e carinho muito passamos a dever.
E, numa linguagem genuinamente católica ro­mana, rematou:
— Muitas almas benditas têm descido do Céu para testemunhar-lhe agradecimento. Isso tem acon­tecido tantas vezes que, com alguns médicos e as­sistentes, fêz-se credor das melhores atenções de nossa Irmandade.
Usando o tato que lhe era característico , nosso orientador indagou:
— Como soube a irmã que o nosso amigo se achava assim tão conturbado?
— Não recebemos qualquer notificação direta, contudo, ele não compareceu hoje às tarefas ha­bituais e isso foi suficiente para indicar-nos que algo de grave estava acontecendo. Nossa superio­ra designou-me para verificar o que havia. Desde então, estou presa, de vez que não supunha a exis­tência de tantos Espíritos das trevas na vizinhança.
A palavra da freira saturava-se de tanta bon­dade espontânea e evidenciava uma fé pura tão encantadoramente ingênua, que a curiosidade me espicaçou o íntimo. A tentação de pesquisar o fascinante problema daquele caridoso esforço assis­tencial me constrangia a interferir no assunto, mas um olhar de Clarêncio bastou para que Hilário e eu nos mantivéssemos em respeitoso silêncio.
— É comovente pensar na sublimidade de sua missão, depois de ausentar-se do corpo terrestre — falou o Ministro, bondoso, talvez provocando al­guma elucidação direta, capaz de satisfazer-nos.
— Sim, trabalhamos sob a direção de Madre Paula — informou a interlocutora, sincera —‘ que nos explica ser a enfermagem nas casas públicas de tratamento uma forma de purgatório benigno, até que possamos merecer novas bênçãos de Deus.
— Mas, irmã, vê-se de pronto que o seu cora­ção está comungando a paz do Senhor.
Ela baixou humildemente os olhos e ponderou:
— Não penso assim. Sou uma pobre religiosa, em trabalho para resgatar os próprios pecados.
No leito, Mário gemia inquieto.
O Ministro pareceu despreocupar-se da pales­tra de ordem pessoal e passou a afagar a fronte do enfermo, dando-nos a idéia de que só ele devia atrair-nos o interesse.
A freira acercou-se respeitosamente de nosso instrutor e disse, calma:
— Irmão, Madre Paula costuma dizer-nos que os ouvidos de Deus vivem no coração das grandes almas. Estou certa de que escutastes minhas ro­gativas. Tenho-vos por emissários da Corte Celeste. Acredito que, desse modo, me compete a obri­gação de confiar-vos nosso doente.
Clarêncio agradeceu o carinho que transparecia daquelas palavras e expôs que a nossa passagem por ali era rápida, o bastante para ministrar o socorro preciso.
A interlocutora encareceu a necessidade de co­municar-se com o hospital, quanto ao cooperador em agitada prostração, e, prometendo voltar em breves minutos, ausentou-se à pressa.
A sós conosco, o orientador, embora de aten­ção ligada ao enfermeiro, explicou, atenciosamente:
— Nossa irmã pertence à organização espiri­tual de servidores católicos, dedicados à caridade evangélica. Temos diversas instituições dessa na­tureza, em cujos quadros de serviço inúmeras entidades se preparam gradualmente para o conheci­mento superior.
— Sob a direção de autoridades ainda ligadas à Igreja Católica? — perguntou Hilário, admirado.
— Como não? todas as escolas religiosas dis­põem de grandes valores na vida espiritual.
Como acontece à personalidade humana, as crenças pos­suem uma região clara e luminosa e uma outra ainda obscura. Em nossa alma, a zona lúcida vive alimentada pelos nossos melhores sentimentos, en­quanto que, no mundo sombrio de nossas experiên­cias inferiores, habitam as inclinações e os impul­sos que ainda nos encadeiam à animalidade. Nas religiões, o campo da sublimação está povoado pelos espíritos generosos e liberais, conscientes de nossa suprema destinação para o bem, ao passo que, nas linhas escuras da ignorância, ainda permanecem as almas pesadas de ódio e egoísmo.
E, sorrindo, o Ministro acentuou:
— Achamo-nos em evolução e cada um de nós respira no degrau em que se colocou.
— Ela, porém, terá penetrado a verdade com que fomos surpreendidos, depois da morte? — per­guntei, intrigado.
— Cada Inteligência — respondeu o orienta­dor, enigmático — só recebe da verdade a porção que pode reter.
Silva, no leito, dava inequívocos sinais de enor­me angústia.
Não ignorava que o meu dever de assistí-lo era trabalho inadiável, todavia, o encanto espiritual da religiosa singularmente arraigada aos hábitos terrestres me excitava de tal maneira a curiosidade que não pude conter a indagação espontânea.
— Mas essa freira sabe que deixou o mundo, sabe que desencarnou e prossegue, assim mesmo, como se via antes?
— Sim — confirmou o instrutor imperturbável.
— E estará informada de que a vida se es­tende a outras esferas, a outros domínios e a ou­tros mundos? perceberá que o céu ou o inferno começam de nós mesmos?
O orientador meneou a cabeça, dando mostras de negativa e acrescentou:
— Isso não. Ela não oferece a impressão de quem se libertou do círculo das próprias idéias para caminhar ao encontro das surpresas de que o Uni­verso transborda. Mentalmente, revela-se adstrita às concepções que elegeu na Terra, como sendo as mais convenientes à própria felicidade.
— E ninguém a incomoda aqui por viver as­sim distante do conhecimento real do caminho?
O orientador assumiu feição mais carinhosa­mente paternal para comigo e ajuntou:
— Antes de tudo, deve nossa irmã merecer-nos a maior veneração pelo bem que pratica e, quanto ao modo de interpretar a vida, não podemos es­quecer que Deus é Nosso Pai. Com a mesma tole­rância, dentro da qual Ele tem esperado por nossa mais elevada compreensão, aguardará um melhor entendimento de nossa amiga. Cada Espírito tem uma senda diversa a percorrer, assim como cada mundo tem a rota que lhe é peculiar.
E, fixando-me com particular atenção, ob­servou:
— A maior lição aqui, André, é a da semen­teira que produz, inevitável. Mário Silva, na posição de enfermeiro, não obstante a ruinosa impulsivi­dade em que se caracteriza, tem sido prestimoso e humano, tornando-se credor do carinho alheio. Segundo vemos, não é um homem devotado às lides religiosas. É irritável e agressivo. De ontem para hoje, chega a sentir-se criminoso... Entretanto, é correto cumpridor dos deveres que abraçou na vida e sabe ser paciente e caridoso, no desempe­nho das próprias obrigações. Com isso, granjeou a simpatia de muitos e encontramo-lo fraternal­mente guardado por uma freira reconhecida...
O ensinamento era efetivamente comovedor. Dispunha-me a prosseguir no comentário, contudo, Silva começou a gemer e o Ministro, incli­nando-se para ele, demorou-se longo tempo a aus­cultá-lo.
Em seguida, Clarêncio reergueu-se e falou:
— Pobre amigo! permanece impressionado com a morte de Júlio, conservando aflitivo complexo de culpa. Tem o pensamento ligado ao pequenino mor­to, à maneira de imagem fixada na chapa fotográ­fica. Passou o dia acamado, sob extrema pertur­bação. Observo que não foi a casa de Antonina, conforme previa. Sentiu-se vencido, envergonha­do... Entretanto, somente nossa irmã possui para ele o remédio indispensável...
Depois de pausa ligeira, indagamos se não nos seria possível socorrê-lo, de modo mais positivo, através de passes, ao que Clarêncio respondeu, se­guro de si:
— O auxílio dessa natureza ampara-lhe as for­ças, mas não resolve o problema. Silva deve ser atingido na mente, a fim de melhorar-se. Requisita idéias renovadoras e, no momento, Antonina é a única pessoa capaz de reerguê-lo com mais segu­rança.
Recordei instintivamente o drama que se de­senrolara ao tempo da Guerra do Paraguai, pa­recendo-me ouvir, de novo, a narração do velho Leonardo Pires.
Assinalando-me o pensamento, o Ministro pon­derou:
— Tudo na vida tem a sua razão de ser. Noutra época, Silva, na personalidade de Esteves, aliou-se a Antonina, então na experiência de Lola Ibarruri, para se afogarem no prazer pecaminoso. com esquecimento das melhores obrigações da vida. Atualmente, estarão reunidos na recuperação jus­ta. Os que se associam na leviandade, à frente da Lei, acabam esposando enormes compromissos para o reajustamento necessário. Ninguém confunde os princípios que regem a existência.
Decidia-me a desfechar novas interrogações, mas Clarêncio, pousando afetuosamente o indica­dor sobre os meus lábios, recomendou:
— Cessa a curiosidade, André! Quando pas­samos a explanar sobre a Lei, nossa conversação adquire o sabor de eternidade, e a imposição de serviço nos condiciona ao minuto que passa.
E, indicando o enfermeiro excitado, anunciou:
— Na tarde de amanhã, voltaremos para con­duzi-lo à residência de nossa irmã. Por intermédio de Antonina, habilitar-se-á para o indispensável reerguimento. Por agora, não podemos fazer mais.
Decorridos alguns instantes, a freira regressou à nossa presença, assistida por outra irmã, que nos cumprimentou com atenciosa reserva.
Ambas haviam sido designadas para a tarefa de auxílio ao cooperador doente. A congregação encarregar-se-ia de todos os trabalhos de vigilân­cia e enfermagem espiritual, enquanto Silva assim permanecesse.
Depois de breve diálogo, saudamo-las com res­peitosa cordialidade e nos retiramos, com a pro­messa de voltar no dia seguinte.




Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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