segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

REAJUSTE

Quando os amigos se afastaram, Clarêncio cer­cou Zulmira de cuidados especiais, aplicando-lhe passes de reconforto.
A injeção de sangue renovador lhe fizera gran­de bem.
Pouco a pouco, acomodaram-se-lhe os centros de força.
Desde a desencarnação do filhinho, a pobre criatura não desfrutava tão acentuado repouso, quanto naquela hora.
Nosso instrutor recomendou a Odila prepa­rasse o pequeno Júlio para o reencontro com a mãezinha.
Zulmira vê-lo-ia, buscando energias novas.
E enquanto nossa irmã se distanciava para o desempenho da missão que lhe fora cometida, o orientador falou, otimista:
— Um sonho reconfortante é uma bênção de saúde e alegria para os nossos irmãos encarnados.
Íamos responder, mas a doente, à semelhança das pessoas na hipnose profunda, levantou-se em Espírito, contemplando-nos, surpresa.
O olhar dela, admirávelmente lúcido, falava-nos de sua ansiedade maternal.
Clarêncio afagou-a, como se o fizesse a uma filha, rogando-lhe calma e fé.
Desdobrava-se-lhe a preleção carinhosa, quando partimos.
Amparada em nossos braços, Zulmira volltou sem perceber.
Observei que o espetáculo magnificente da Na­tureza não lhe feria a atenção. Introvertida, ape­nas a imagem da criancinha morta lhe ocupava a tela mental.
O Lar da Bênção mostrava-se maravilhoso.
Flores de rara beleza coloriam a estrada e embalsamavam-na de suave perfume.
Aqui e ali, doces melodias vibravam no ar. A glória fulgurante do céu induzia-nos à oração de reverência e louvor ao Pai Celestial, mas a pobre mulher que seguia conosco parecia insen­sível à excelsitude do ambiente, à face da tortura interior de que se via possuída, obrigando-me a reconhecer, mais uma vez, que o paraíso da alma, em verdade, reside onde se lhe situa o amor.
Reparei que para a devoção afetuosa de Zul­mira não importava o rumo. Qualquer indaga­ção, perante aquela ternura atormentada, resulta­ria inútil.
Creio que, se, ao invés da refulgente luz do Lar da Bênção, apenas víssemos trevas, para aquele espírito agoniado de mãe o quadro seria de verda­deiro paraíso, desde que pudesse reter nos braços o filhinho inesquecível.
Quem poderá definir com exatidão os indevas­sáveis segredos que Deus colocou nos corações que amam?
Quando penetramos o berçário, onde o menino repousava, sob a abnegada vigilância de Odila e Blandina, a sofredora mãezinha tentou arrojar-se sobre a criança sonolenta, sendo delicadamente ad­vertida por nosso orientador, que a sustentou, pa­ternal, asseverando:
— Zulmira, não perturbes o pequenino se o amas.
— É meu filho! — bradou, semidesvairada.
— Não ignoramos que Júlio se asilou na Terra em teu regaço e, por isso, fomos teus companhei­ros na presente viagem para que amenizes a tua dor. Entretanto, não admitas que o egoísmo te ensombre a alma!... Certamente, o carinho ma­terno é um tesouro inapreciável, contudo não de­vemos olvidar que todos somos filhos de Deus, nosso Eterno Pai! Acalma-te!
Pede ao Senhor os recursos necessários para que o teu devotamento seja um auxílio positivo ao pequenino necessitado!
Tocada por essas palavras, Zulmira desfez-se em pranto.
Enlaçada afetuosamente por Odila, que ten­tava soerguer-lhe o ânimo, reconheceu a primeira esposa de Amaro e recordou a luta que haviam atravessado, quando do afogamento do pequeno irmão de Evelina.
O remorso voltou a refletir-se-lhe na mente e, atribulada, exclamou:
— Odila! perdoa-me, perdoa-me!... agora vejo o inferno que te impus, despreocupando-me de teu filhinho... Hoje, pago com lágrimas minha deplo­rável displicência! Ajuda-me, querida irmã!...
Sê para o meu Júlio a guardiã que não fui para o teu!
A interpelada acariciou-a, compadecidamente, e ajuntou:
— Tem paciência! a aflição é um incêndio que nos consome... Paguemos à vida o tributo da con­formação na dor, para que sejamos efetivamente dignas do socorro celestial...
E, beijando-a nos olhos, aduziu:
— Enxuga as lágrimas que te fustigam inutilmente. A serenidade é o nosso caminho de rees­truturação espiritual. Não te reportes ao passado... Vivamos o presente, fazendo o melhor ao nosso alcance.
— Agora, porém, que sofro as agruras de mi­nha prova — acentuou Zulmira, em tom amargo —, penso em teu anjinho...
Odila, aconchegando de encontro ao peito, conduziu-a para mais perto do menino adormecido e, indicando-o, aclarou, satisfeita:
— Ouve! meu filhinho é também o teu. Júlio de hoje é o nosso Júlio de ontem. Pesados compromissos com o pretérito obrigaram-no a aceitar as dificuldades do momento... Em nosso apren­dizado de agora, teve a existência frustrada por duas vezes, a fim de valorizar, com segurança, a bênção da escola terrestre.
Ante a companheira perplexa, acrescentou, con­vincente:
— O corpo de carne é uma veste que o nos­so Júlio usou de dois modos diferentes, por nosso intermédio.
E sorrindo:
— Como vemos, somos duas mães, partilhando o mesmo amor.
Notávamos que Zulmira, admirada, estimaria algo perguntar, mas o choque da revelação como que lhe imobilizara a garganta.
No imo d'alma, decerto algo lhe alterara o campo emotivo.
Secaram-se-lhe as lágrimas, ao passo que o olhar se lhe fazia mais brilhante.
Afigurava-se-nos uma estátua viva de intra­duzível expectação.
Sem resistência, deixou-se conduzir pelos bra­ços de Odila até um leito próximo, para ajustar-se ao repouso preciso.
Agora sim — pensava, surpreendida —, co­meçava a compreender... Júlio prematuramente expulso da experiência material pelo afogamento, ao mundo tornara em nova tentativa que redundara em frustração...
Porquê? porquê?
O pensamento dolorido intentava penetrar os segredos do tempo, arrastando-a ao passado remo­to, mas o cérebro doía-lhe, dilacerado... Realmen­te, não lhe seria possível naquelas circunstâncias qualquer incursão no domínio das reminiscências, mas percebia, enfim, a Bondade Eterna que reúne as almas nos mesmos laços de trabalho e espe­rança do caminho redentor...
Lembrou a animo­sidade fria que experimentara por Júlio. logo após seus esponsais, e o imanifesto ciúme que nutria, diante das atenções que Amaro lhe dispensava, e reconheceu que a Providência Divina, ligando-o ao seu coração de mãe, lhe sublimara os sentimentos...
Agora sentia por ele inexpressável carinho e iluminado amor...
De espírito assim transformado, via em Odila não mais a rival, mas a benfeitora que, sem dú­vida, lhe seguira de perto a transfiguração.
Enlaçou-se a ela, em pranto silencioso, qual se lhe fora filha a ocultar-se nos braços maternais.
A primeira esposa de Amaro, imensamente co­movida, correspondia-lhe as manifestações afetivas, afagando-lhe os cabelos.
— Convém-lhe o repouso — afirmou Clarên­cio, amigo —, qualquer recordação agora lhe agra­varia o conflito mental.
Odila desembaraçou-se da companheira, dei­xando-a a sós no descanso justo, e seguiu-nos.
Despedindo-nos, o instrutor aconselhou fosse Zulmira mantida no berçário mais algumas horas.
Desse modo, o corpo denso seria mais amplamente beneficiado pelo sono reparador.
Voltaríamos para reconduzi-la à residência ter­restre, de maneira a garantir-lhe, tanto quanto possível, as melhoras gerais.
Afastamo-nos, assim, para regressar em breve.
Com efeito, transcorrido o tempo que o nosso instrutor julgou indispensável, tornamos ao Lar da Bênção para restituir nossa amiga ao ninho distante.
O relógio marcava nove da manhã, quando a enferma, sob a nossa vigilância, despertou no cor­po físico.
Zulmira, retomando o equipamento cerebral mais denso, não conseguiu articular a lembrança da excursão que se lhe afigurou, então, delicioso sonho.
Guardava a impressão nítida de que revira o filhinho em alguma parte e semelhante certeza lhe restaurara a calma e a confiança.
Sentia-se mais leve, quase feliz.
Evelina, atendendo-lhe o chamado, identificou-lhe as melhoras, rendendo graças a Deus.
A jovem, contente, trouxe Antonina e Lisbela ao quarto. A viúva chegara cedo com a filhinha, com o melhor desejo de cooperar.
A doente saudou-as, satisfeita. Recordava-se, de modo impreciso, da noite anterior e agradeceu o cuidado de que se via objeto. Aceitou o café substancioso que lhe foi trazido e tão reanimada se sentia que, sem qualquer cerimônia, confiou a Antonina as impressões renovadoras de que se via dominada.
Permanecia convicta de que vira Júlio e abra­çara-o... Onde e como? não saberia dizer.
Mas o contentamento que a felicitava era bem o teste­munho de que recolhera naquela noite benefícios reais.
— Felizmente, a transfusão de sangue foi co­roada de pleno êxito! — exclamou Evelina, encantada.
— Sim — disse Antonina, concordando —, a providência terá sido das mais proveitosas, no entanto, estou certa de que dona Zulmira terá re­encontrado o filhinho no plano espiritual, readqui­rindo novo ânimo para a luta.
Aquela asserção confiante foi registrada pela enferma com sincera alegria.
— A senhora julga então possível? — inda­gou a dona da casa, de olhos faiscantes.
— Como não? — aduziu Antonina, confortada — a morte não existe como a entendemos. Do Além, nossos amados que partiram estendem-nos os braços. Tenho igualmente um filho na Vida Maior que vem sendo para mim precioso susten­táculo.
A enferma demonstrou invulgar interesse na conversação.
Há momentos na vida em que somos castiga­dos pela fome de fé e Antonina era uma fonte irradiante de otimismo e firmeza moral.
Evelina e Lisbela retiraram-se para o interior da casa, atentas à limpeza doméstica e as duas amigas passaram a mais íntimo entendimento.
A colaboração de Antonina fora realmente pro­videncial, porque, ao deixarmos o domicilio do fer­roviário, reparamos que Zulmira, de alma restau­rada, ao toque de novas esperanças, mostrava no rosto a tranquilidade segura de abençoada conva­lescença.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

Nenhum comentário: