quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

EM PRECE

Um ano depois do casamento de Antonina, dirigimo-nos todos juntos à residência do ferroviário, na qual tantas vezes nos reuníramos entre a prece e a expectação.
A vida marchara como sempre...
Júlio e Leonardo haviam renascido em paz, quase que ao mesmo tempo, trazendo ao mundo elevados programas de serviço. Recém-chegados àTerra, sorriam ingênuamente para nós, aconchegados ao colo materno.
Amaro e Zulmira, Silva e Antonina, cônscios das obrigações que haviam assumido, prosseguiam juntos, entrelaçados na mesma compreensão fra­ternal.
O singelo domicílio mostrava-se magnificamen­te florido, superlotado de amigos sorridentes.
Lucas e Evelina celebravam os esponsais.
Nos dois planos, entre encarnados e desencar­nados, tudo era esperança e alegria, paz e amor.
Os noivos fitavam-se venturosos e Odila, na função de sacerdotisa do lar, ia e vinha, pondo e dispondo na direção do acontecimento.
Entardecia, quando o juiz, com a felicidade de todos, lido o contrato de matrimônio, pronunciou o clássico «declaro-vos casados em nome da Lei.
Oscularam-se os nubentes com inexcedível afe­to e vimos espantados que Odila, em muda oração, se transfigurava, coroando-se de luz. Desvelou os olhos que se nos afiguraram mais lúcidos e con­templou a filha, embevecidamente.
Obedecendo, porém, a secreto impulso, ao in­vés de caminhar na direção de Evelina, dirigiu-se para Zulmira, enlaçando-a em lágrimas.
Havia naquele gesto tanto carinho natural e tanto reconhecimento espontâneo, que intensa emo­tividade nos tomou de assalto. Transfundiam-se ali dois corações maternos, na mesma vibração de paz, haurida na vitória interior pelo dever bem cumprido.
Envolta na faixa de ternura em que se via mergulhada, a segunda esposa de Amaro começou a chorar, possuida de inexprimível contentamento, como se inarticulada melodia do Céu lhe invadisse, por inteiro, o coração.
Ali mesmo, homem tocado de fé viva, o dono da casa rogou a Antonina pronunciasse o agrade­cimento a Jesus.
A esposa de Silva não vacilou.
Cerrando as pálpebras, parecia procurar-nos em espirito, qual antena vibrátil, atraindo a onda sonora.
Clarêncio abeirou-se dela e, tocando-lhe a fron­te com a destra, entrou em meditação.
Suavemente impulsionada pelo Ministro, nossa amiga orou com sentida inflexão de voz:
Amado Jesus, abençoa a nossa hora fes­tiva que te oferecemos em sinal de carinho e gratidão.
Ajuda aos nossos companheiros que hoje se consorciam, convertendo-Lhes a esperança em doce realidade.
Ensina-nos, Senhor, a receber no lar a cartilha de luz que nos deste no mundo —generosa escola de nossos corações para a vida imortal.
Faze-nos compreender, no campo em que lutamos, a rica sementeira de renovação e fra­ternidade em que a todos nos cabe aprender e servir.
Que possamos, enfim, ser mais irmãos uns dos outros, no cultivo da paz, pelo esforço no bem.
Tu que consagraste a ventura doméstica, nas bodas de Caná, transforma a água viva de nossos sentimentos em dons inefáveis de trabalho e alegria.
Reflete o teu amor na simplicidade de nossa existência, como o Sol se retrata no fio dágua humilde.
Guia-nos, Mestre, para o teu coração que anelamos eterno e soberano sobre os nossos destinos, e que a tua bondade comande a nos­sa vida é o nosso voto ardente, agora e para sempre. Assim seja.
Calara-se Antonina.
Doce exaltação emotiva pairava em todos os semblantes.
Odila, sensibilizada, reunia Amaro e Zulmira nos braços, quais se lhe fossem filhos do coração.
Fitei a esposa de Silva, de quem o Ministro se afastara, e lembrei a noite em que lhe visitei o domicílio pela primeira vez.
Nunca me esqueci da excursão em que fomos designados para acompanhá-la em visitação ao fi­lhinho, quando ignorávamos totalmente a importân­cia de sua participação no drama que iríamos viver.
Dirigi-me ao instrutor e indaguei se ele, Cla­rêncio, conhecia a posição de nossa amiga, ao tempo de nosso primeiro contacto.
— Sim, sim... — respondeu, gentil —, mas não lhes dei a conhecer antecipadamente a significação dela no romance vivo que estamos acompa­nhando, porque todos nós, meu amigo, precisamos reconhecer que o trabalho é a nossa lição. Mova­mos a mente no serviço que nos compete e adqui­riremos a chave de todos os enigmas.
O apontamento era dos mais expressivos, mas não pude delongar a conversação, de vez que Irmã Clara, agora abraçada a Odila, convidava-nos ao regresso.
Entre adeuses cariciosos, Lucas e Evelina ha­viam tomado o auto que os conduziria a experiências novas na capital bandeirante.
A festa alcançara o fim...
Ao lado de nosso orientador, perguntei, reve­rente:
— Nossa história terminará, assim, com um casamento risonho, à moda de um filme bem acabado?
Clarêncio estampou o sorriso de sua velha sa­bedoria e falou:
— Não, André. A história não acabou, O que passou foi a crise que nos ofereceu motivo a tantas lições. Nossos amigos, pelo esforço admirável com que se dedicaram ao reajuste, dispôem agora de alguns anos de paz relativa, nos quais poderão re­plantar o campo do destino. Entretanto, mais tar­de, voltarão por aqui a dor e a prova, a enfermi­dade e a morte, conferindo o aproveitamento de cada um. É a luta aperfeiçoando a vida, até que a nossa vida se harmonize, sem luta, com os Desíg­nios do Senhor.
O Ministro não logrou prosseguir.
Nossa caravana, constituída por dezenas de companheiros, iniciara a volta.
A viagem, diante do firmamento que acendia flamejantes lumes, não podia ser mais bela...
Chegados, porém, ao Lar da Bênção, notamos que Odila chorava copiosamente.
Aquela alma varonil de mulher vencera a ba­talha consigo mesma, no entanto, não parecia satisfeita com o próprio triunfo. Clara conseguira-lhe brilhante posição de trabalho nas esferas mais altas, contudo, nossa heroína revelava-se em penosa consternação.
Penetrando o santuário de Blandina, onde tan­tas vezes nos reuníramos para examinar os proble­mas que nos afligiam de perto, o Ministro abraçou-a e recomendou, paternal:
— Odila, enquanto celebramos tua vitória, dize que céu procuras!
Ela caminhou para Irmã Clara e osculou-lhe a destra, num gesto mudo de reconhecimento e, depois, voltando-se para o nosso instrutor, respon­deu com humildade:
— Devotado benfeitor, meu lar terrestre é o meu paraíso...
— Mas não ignoras que o domicílio do mundo não te pertence mais.
— Sim — concordou a interlocutora, respei­tosa —, sei disso, entretanto, desejo servir a ele, sem que ele seja meu... Amo meu esposo por ines­quecível companheiro da vida eterna, abençoando a admirável mulher a quem ele agora pertence e que passei a querer por filha de minha ternura... Amo meus filhos, apesar de saber que não podem presentemente sentir o calor de meu coração... Deus sabe que hoje amo sem o propósito de ser amada, que me proponho oferecer-me sem retri­buição, a fim de aprender com Jesus a dar sem receber...
A emoção embargou-lhe a voz.
De nosso lado, tínhamos nossos olhos mareja­dos de pranto.
Visivelmente comovido, Clarêncio levantou-lhe a fronte submissa, afagou-lhe os cabelos e, colo­cando-lhe uma flor de luz sobre o peito, exclamou:
— Onde permanece o nosso amor, aí fulgura o céu que sonhamos. Mereces o paraíso que pro­curas. Retorna, Odila, ao teu lar quando quiseres. Sê para o teu esposo e para as almas que o seguem o astro de cada noite e a bênção de cada dia! O amor puro outorga-te esse direito. Volta e ama... E, quando te ergueres do vale humano, teu coração será como faixa de sol, trazendo ao Cristo os co­rações que pastorearás no campo imenso da vida!
Odila ajoelhou-se e beijou-lhe as mãos vene­ráveis.
Nesse instante, funda saudade assomou-me à alma opressa.
Experimentei a estranha sensação do pai que busca inutilmente os filhos arrebatados ao seu carinho. Ave distante da paisagem que a vira nascer, vi-me atormentado pelo anseio de recuperar, de imediato, o meu ninho...
Lágrimas quentes derramavam-se de meu co­ração pela concha dos olhos e, temendo perturbar a harmonia reinante, demandei o jardim próximo e, sózinho, fitei o firmamento, pintalgado de es­trelas...
O vento que soprava célere parecia dizer-me:
— «Confia!...» O perfume das flores, de passa­gem por mim, apelava em silêncio: — “Não te detenhas!” E as constelações faiscantes, pendendo da Altura, davam-me a impressão de acenos da luz eterna, concitando-me sem palavras: — «Luta e aperfeiçoa-te! A plenitude do teu amor brilhará também um dia!... »
Então, numa prece de agradecimento ao Pai Celestial, percebi que meu espírito pacificado sorria, de novo, ao toque inefável de sublime espe­rança.

Fim


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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