domingo, 9 de fevereiro de 2014

CORAÇÕES RENOVADOS

Três dias haviam corrido sobre a libertação de Júlio.
De novo, ao lado de Zulmira, nas primeiras ho­ras da noite, reparávamos-lhe a profunda exaustão...
O enfraquecimento progressivo impusera-lhe perigosa situação orgânica.
O próprio Clarêncio, depois de auscultá-la, ano­tou, apreensivo:
— Nossa irmã reclama socorro mais seguro. O esgotamento é quase completo.
A enferma recebia-lhe a assistência magnética, quando Mário, Antonina e Haroldo deram entrada em sala próxima.
Deixamos nosso instrutor com a doente e de-mandamos a peça em que se efetuaria o encontro familiar.
O ferroviário e a filha faziam as honras da casa.
Amaro, acolhedor, dava mostras de grande alí­vio. O sorriso, embora triste, era largo e espon­tâneo, demonstrando o contentamento interior de quem via terminar velha e desagradável desavença.
Mário, porém, surgia constrangido e desajei­tado, enquanto Antonina irradiava simpatia e bon­dade, cativando, de improviso, a amizade dos an­fitriões.
O enfermeiro apresentou a jovem senhora e o filhinho por amigos particulares e depois, eviden­temente instruído pela companheira, iniciou a pa­lestra, comentando a penosa impressão que lhe causara o falecimento do pequenino e pedia escu­sas por não haver reaparecido, como reconhecia de seu dever.
A ocorrência desnorteara-o.
Caíra de cama, impressionado com o aconte­cimento que lhe não cabia esperar.
Falava realmente comovido, porque, lembrando os derradeiros minutos da criança, represavam-se-lhe os olhos de lágrimas que não chegavam a cair. Aquela emotividade manifesta, aliada à humil­dade sincera que Silva deixava transparecer, to­cava o coração de Amaro, que se descerrou mais amplamente.
— Percebi — disse o dono da casa — a dor que o envolveu no momento justo em que nosso anjinho era arrebatado pela morte. Sua aflição me comoveu muito, não só pelo devotamento do pro­fissional que nos assistia, mas também pela afe­tividade pura do amigo que, há tanto tempo, se distanciara de nossos olhos.
A generosidade do ex-rival, por sua vez, in­fluenciava o enfermeiro de modo decisivo.
As vibrações de afabilidade e carinho que se desprendiam do apontamento afetuoso modificavam-lhe o íntimo.
Mário passou a sentir balsamizante desafogo.
E, enquanto Evelina se afastava para atender à madrasta doente, reportou-se à tortura moral que o assaltara, assim que viu Júlio inerte, deten­do-se na breve descrição do complexo de culpa que o acometera. Teria seguido com segurança a indicação do especialista? Enganar-se-ia, porventura, na dosagem da medicação?
Na ligeira pausa que surgiu, natural, Amaro tornou à palavra, acrescentando, bondoso:
— Não havia motivo para tamanha preocupa­ção. Desde a primeira visita médica, compreendi que o nosso filhinho estava condenado. O soro foi o último recurso.
E, com dolorida resignação, acentuou:
— Não é a primeira vez que atravesso uma provação dessa ordem. Há tempos, sofri a perda do caçula de meu primeiro matrimônio, estranhamente afogado numa de nossas raras excursões até à praia. Confesso que só me faltou enlouquecer. Entretanto, apeguei-me à religião para não soço­brar e hoje compreendo que somente nos compete acatar os desígnios de Deus. Não passamos de criaturas necessitadas de socorro divino, a cada instante de nossa experiência humana.
— Sem dúvida — interferiu Antonina, otimis­ta —, sem apoio espiritual, não avançaríamos um passo no terreno da verdadeira harmonia íntima. A morte do corpo nem sempre é o pior que nos possa acontecer. Quantas vezes os pais são cons­trangidos a acompanhar a morte moral dos filhos, no crime ou na viciação que não conseguem inter­romper? Também perdi um dos rebentos que Deus me confiou, mas procurei acomodar-me à saudade sem revolta, porque a Sabedoria do Senhor não deve ser menosprezada.
— Que prazer ouvi-la! — disse o ferroviário, com discreta satisfação — após afeiçoar-me, com mais empenho, ao Catolicismo, na leitura de Santo Agostinho, observo que abençoada renovação se fêz em mim.
E fitando a interlocutora, com mais atenção, aduziu:
— A senhora é também católica?
Antonina sorriu, delicada, e informou:
— Não, senhor Amaro, em matéria de fé, acei­to a interpretação evangélica do Espiritismo, en­tretanto, isso não impede que estejamos procurando o mesmo Mestre.
— Ah! sim, Jesus é o nosso porto — acentuou o anfitrião, liberal —, não entendo a religião por elemento separatista. A senhora, na condição de espírita, e eu, na posição de católico, possuímos uma só linguagem na fé que nos identifica. Creio que a Providência Divina, como o Sol, brilha para todos.
— É muita alegria sentir-lhe a nobreza d'alma — comentou Antonina, entusiástica —; na essência, desejamos ser cristãos sinceros e a sua ge­nerosidade me permite entrever a beleza do Cristo nas vidas nobres.
Amaro não conseguiu responder.
Um táxi parou à porta e, de imediato, o mé­dico da família entrou para a inspeção.
Depois das saudações usuais, passou ao quarto da enferma e, porque o dono da casa se propusesse segui-lo, recomendou-lhe permanecesse na sala com as visitas, de vez que tencionava submeter a doen­te a meticuloso exame, pretendendo ouvi-la a sós.
Evelina veio ter conosco e, acompanhando o facultativo com o nosso olhar. vimo-lo carinhosa­mente recebido por Clarêncio e Odila, que se nos mostraram à porta.
A conversação passou a desdobrar-se em torno de Zulmira.
O chefe da família, preocupado, discorria so­bre a esposa acamada, encarecendo a delicadeza da situação.
Zulmira, que adoecera com a enfermidade do fi­lhinho, desde a morte dele, não mais se alimentara.
Não obstante todos os conselhos médicos e todos os apelos afetivos, demonstrava-se alheia, no mais amplo desinteresse pela vida.
Enfraquecia, de modo alarmante.
Como se quisesse dar notícias de seu círculo particular ao atento enfermeiro, relacionou os desajustes psíquicos da companheira, antes da vinda do filhinho que a morte lhes arrebatara ao con­vívio.
Zulmira, com a maternidade triunfante, como que se renovara.
Revelara-se mais alegre, mais viva.
Readquirira a saúde plena.
Com a desencarnação da criança, nova crise de contratempos invadira-lhe a casa.
A moléstia asilara-se, ali, de novo, entre as quatro paredes.
Mário, a permutar significativos olhares com Antonina, de quando em quando se situava entre a perplexidade e o desencanto.
A confissão de Amaro constituía um testemu­nho de humildade pura.
Em muitas ocasiões, fantasiara-o, na própria imaginação, qual se fora um poço de orgulho e arrogância e, por muitas vezes, surpreendera-se em acalorados solilóquios, rixando com ele em pensa­mento.
Agora, reparava que o antagonista era um homem comum, tanto quanto ele necessitado de paz e compreensão.
O entendimento prosseguia mais afetuoso, quando o clínico tornou à sala.
De semblante torturado, dirigiu-se ao ferroviário, notificando:
— Amaro, a providência é quase impossível quando a previdência não funciona. A posição de Zulmira piorou muitíssimo nas últimas horas. O soro aplicado desde ontem não trouxe o resultado preciso. O abatimento é enorme. Creio indispen­sável uma transfusão de sangue ainda esta noite. para que não sejamos amanhã surpreendidos por obstáculos insuperáveis.
Amaro empalideceu.
Antonina voltou-se em silêncio para Silva, como a dizer-lhe, de coração para coração: — Não he­site. É a sua hora de ajudar. Aproveite a opor­tunidade.
Mário, acanhado, levantou-se maquinalmente e, antes que Amaro fizesse qualquer referência ao assunto, apresentou-se ao médico, explicando:
— Doutor, se a minha cooperação for aceita, sentirei prazer nisso. Sou doador de sangue no hospital em que trabalho. Um telefonema seu ao pediatra amigo, a quem o senhor recorreu no caso de Júlio, pode confirmar as minhas palavras.
E, erguendo os olhos para o ex-rival, disse, em voz quase suplicante:
— Amaro, permita-me! quero auxiliar a doen­te de algum modo!... Afinal de contas, somos todos, agora, bons irmãos.
O chefe da casa, comovido, abraçou-o reco­nhecidamente.
— Obrigado, Silva!
Nada mais conseguiu dizer.
De olhos angustiados, dirigiu-se para o apo­sento da mulher, envolvendo-a em manifestações de carinho.
Antonina, colocando Haroldo junto a uma pilha de revistas velhas, pôs-se à disposição de Evelina para qualquer atividade caseira, enquanto Mário e o médico partiam, velozes, em busca do material necessário.
Transcorrida uma hora, a cãmara da enferma se iluminava mais intensamente para o serviço a fazer.
Zulmira, admirada, reconheceu Mário, todavia era enorme a prostração para que pudesse demons­trar interesse ou desprazer. Apresentada a Anto­nina, limitou-se a endereçar-lhe alguns monossíla­bos, com um breve sorriso de reconhecimento.
Assumindo a direção da enfermagem, a jovem viúva parecia uma figura providencial.
Amparou a doente com carinho, auxíliou o clínico nas tarefas do momento e, cativando a gratidão dos novos amigos, colaborou com Evelina para que todas as medidas alusivas à higiene se efe­tuassem harmoniosas.
Realizada a transfusão, a enferma entrou na reação característica, contudo, Silva, fosse porque estivesse de si mesmo enfraquecido ou porque a quantidade de sangue tivesse sido demasiada, pas­sou a acusar profundo abatimento.
Em seus olhos, porém, brilhava uma luz di­ferente.
Afigurava-se-lhe haver perdido as inquietações que o martirizavam. Adquirira a noção de que se reabilitara, perante a própria consciência. Trou­xera aos ex-adversários o próprio coração em for­ma de visita fraterna. E as suas próprias forças insufladas no campo orgânico da mulher que lhe fora a bem-amada, como que lhe favoreciam a au­sência dos velhos pensamentos de mágoa que, por tanto tempo, lhe haviam flagelado a vida íntima.
Registrando-lhe a queda de energias, o médico ministrou-lhe, de imediato, os recursos aconselhá­veis, permanecendo Mário, desse modo, cômodamen­te instalado em larga poltrona, junto dos amigos.
Despediu-se o facultativo, mais animado.
Antonina, sem afetação, ajudou no preparo do café, que foi saboreado por todos, enquanto a con­versação era reatada com alegria.
Foi então que a viúva se ofereceu para voltar. Era industriária e, na posição de mãe, res­ponsabilizava-se por três crianças, entretanto, po­deria dispor de dois dias.
Amaro salientou a dificuldade para encontrar uma enfermeira ou governanta para horas difíceis e aceitou a gentileza.
Antonina, contente, prometeu regressar, tra­zendo Lisbela, na manhã seguinte. Estava convencida de que a menina conseguiria entreter Zulmira, com as suas infantilidades, mitigando-lhe o coração saudoso de mãe.
Evelina abraçou-a, encantada. Simpatizara-se com Antonina, como se fossem duas irmãs.
Algo reanimado e positivamente feliz, Mário dispôs-se à retirada e um táxi foi trazido.
Num ambiente de construtiva cordialidade, de­senvolveu-se a reconfortante despedida.
E Silva, fitando a companheira de excursão com reconhecimento e carinho, sentiu-se reconciliado consigo mesmo, irradiando a alegria silenciosa de quem retorna à felicidade.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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