domingo, 2 de fevereiro de 2014

APELO MATERNAL

A paisagem doméstica, na residência de Amaro, não mostrava qualquer alteração.
Zulmira, atormentada por Odila, que realmen­te lhe vampirizava as forças, jazia no leito, apática e desolada, como estátua viva de angústia e medo escutando o vento que zunia, lá fora...

Mais magra e mais abatida, exibia comovedo­ramente a própria exaustão.
Irmã Clara, depois de expressivo entendimento com o nosso orientador, solícitou que nos manti­véssemos a pequena distância, e, abeirando-se da genitora de Evelina, que tanto quanto a enferma não nos percebia a presença, alongou os braços em prece.

Sob forte emoção, acompanhei o formoso qua­dro que se desdobrou, divino, ao nosso olhar.
Gradativamente, o recinto foi invadido por vas­to círculo de luz, do qual se fizera a instrutora o núcleo irradiante. Assemelhava-se nossa amiga a uma estrela repentinamente trazida à Terra, com os dois braços distendidos em forma de asas, pres­tes a desferir excelso vôo...

Cercava-a enorme halo de dourado esplendor, como se ouro eterizado e luminescente lhe emol­durasse a forma leve e sublime... Dos revérberos dessa natureza, passavam as irradiaçôes a tona­lidades diferentes, em círculos fechados sobre si mesmos, caminhando dos reflexos de ouro e opala ao róseo vivo, do róseo vivo ao azul celeste, do azul celeste ao verde claro e do verde claro ao vio­leta suave, que se transfundia em outros aspectos a me escaparem da apreciação...

Tive a idéia de que a irmã Clara se convertera no centro de milagroso arco-íris, cuja existência nunca pudera vislumbrar.
Fizera-se a casa excessivamente estreita para aquela abençoada fonte de raios balsamizantes e indefiníveis.

Reparei que a própria Odila se aquietara como que dominada por branda coação.
Extático, mal consegui articular alguns monos­sílabos, procurando esclarecimento em nosso instrutor.

— Irmã Clara — informou o Ministro, igual­mente enlevado — já atingiu o total equilíbrio dos centros de força que irradiam ondulações lu­minosas e distintas. Em oração, ao influxo da mente enaltecida, emite as vibrações do seu sentimento purificado, que constituem projeções de harmonia e beleza a lhe fluírem do ser. Se parti­lhássemos com ela a mesma posição evolutiva, entraríamos agora em relação imediata com o ele­vado plano de consciência em que se exterioriza e, então, em vez de somente observarmos este deslumbramento de luz e cor, perceberíamos a men­sagem glorificada que lhe nasce do coração, de vez que as irradiações sob nossos olhos são música e linguagem, sabedoria e amor do pensamento a ex­pressar-se maravilhoso e vivo... A sintonia espi­ritual perfeita, porém, só é possível entre aqueles que se confundem na afinidade completa...

A mensageira transfigurada parecia mais bela.

Avançou para a primeira esposa de Amaro e cobriu-lhe os olhos com a destra lirial.

— Reparem — disse Clarêncio, feliz —: ela guarda o poder de ampliar a visão. Odila identi­ficar-lhe-á a presença, assim como a vemos.
Com efeito, vimos que a genitora de Evelina, tocada por aqueles dedos celestes, proferiu um gri­to de encantamento selvagem e caiu de joelhos.

Naturalmente ofuscada pelo brilho de que se envolvia a visitante inesperada, começou a chorar, suplicando:

— Anjo de Deus, socorre-me! socorre-me!...

— Odila, que fazes? — interrogou a emissária com inesquecível inflexão de ternura.

— Estou aqui, vingando-me por amor...

— Haverá, porém, algum ponto de contacto entre amor e vingança?

Indicando timidamente a triste companheira que jazia acorrentada ao leito, Odila tentou conservar a atitude que lhe era característica, excla­mando, cruel:

— Devo alijar a intrusa que me assaltou a casa! Esta miserável mulher tomou-me o marido e assassinou-me o filhinho!... Quem ama faz jus­tiça pelas próprias mãos!...

— Pobre filha! — revidou Clara, abraçando-a. Quem ama semeia a vida e a alegria, combatendo o sofrimento e a morte... Quando nosso culto afetivo se converte em flagelação para os que seguem ao nosso lado, não abrigamos outro senti­mento que não seja aquele do desvairado apego a nós mesmos, na centralização do egoísmo aviltante. Achamo-nos à frente de infortunada irmã, arro­jada a dolorosa prova. Não te dói vê-la derrotada e infeliz?

— Ela desposou o homem que amo!... — so­luçou Odila, mais dominada pela influência magné­tica da mensageira que impressionada por suas belas palavras.

— Não seria mais justo — ponderou Clara sem afetação — considerar que ele a desposou?

E, acariciando-lhe a cabeça agora trêmula, a instrutora aduziu:

— Odila, o ciúme que não destruímos, enquan­to dispomos da oportunidade de trabalhar no corpo denso, transforma-se em aflitiva fogueira a calci­nar-nos o coração, depois da morte.

Acalma-te! A mulher de carne, que eras, precisa agora oferecer lugar à mulher de luz que deves ser. A porta do lar terrestre, onde te supunhas rainha de pequeno império sem fira, cerrou-se com os teus olhos ma­teriais! A passagem na Terra é um dia na escola... Todos os bens que desfrutávamos no mundo de onde viemos constituíam recursos do Senhor que No-los concedia a título precário. Por lá, raramen­te nos lembramos de que o tesouro do carinho doméstico é algo semelhante a sementeira precio­sa, cujos valores devemos estender...

Começamos a obra de amor no lar, mas é necessário desenvolvê-la no rumo da Humanidade inteira. Temos um só Pai que é o Senhor da Bon­dade Infinita, que nos centraliza as esperanças...

Somos, assim, todos irmãos, partes integrantes de uma família só... Já te imaginaste no lugar de Zulmira, experimentando-lhe as dificuldades e afli­ções? Já te colocaste na condição do esposo que asseveras amar? Se te visses no mundo, sem a companhia dele, com os filhinhos necessitados de consolo e sustentação, não sentirias reconhecimen­to por alguém que te auxiliasse a protegê-los?

Con­sideras somente os teus problemas... Entretanto, o homem amado permanece no cárcere de escuros padecimentos íntimos a debater-se com enigmas in­quietantes, sem que te disponhas a socorrê-lo...

— Não me fales assim! — imprecou a inter­pelada, com evidentes sinais de angústia — odeio a infame que nos roubou a felicidade...

— Odila, reflete! Esqueces-te de que a mulher sempre é mãe? O túmulo não te restituirá o corpo que a Terra consumiu, e, se desejas recuperar a ternura e a confiança do companheiro que deixaste na retaguarda, é preciso saber amá-lo com o es­pírito. Modifica os impulsos do coração!

Não suponhas Amaro capaz de querer-te, transtornada qual te encontras, entre as farpas envenenadas do despeito, caso chegasse, de repente, até nós...

— Ela, porém, matou meu filho!...
— Como podes provar semelhante acusação?
— A intrusa invejava-lhe a posição no carinho de Amaro.
— Sim — concordou Clara, afetuosa —, admi­to que Zulmira assim se conduzisse. É inexperiente ainda e a ignorância enquanto nos demoramos na Terra pode impedir-nos a visão, mas não seria justo, tão somente por isso, atribuir-lhe a morte do pequenino... Medita! A verdadeira fraternidade ajudar-te-á a sentir naquela que te sucedeu no lar uma filha suscetível de recolher-te o afeto e a orientação... Em lugar de forjares uma inimiga na sinistra bigorna da crueldade, edificarás uma dedicação nobre e leal para enriquecer-te a vida. Retirando a luz do teu amor das chamas combu­rentes do inferno de ciúme em que padeces pela própria vontade, serás realmente para o homem querido e para a filha que clama por tua assistên­cia uma inspiração e uma bênção!...

Talvez porque Odila, quase vencida, simples­mente chorasse, a mensageira afagava-lhe os ca­belos, acrescentando:
— Sei que sofres igualmente como mãe ator­mentada... Recorda, contudo, que nossos filhos per­tencem a Deus... E se a morte colheu a criança que estremeces, separando-a dos braços paternais, é que a Vontade Divina determinou o afastamento...

A mensageira amimava-lhe a fronte, dando-nos a impressão de que a submetia a suaves operações magnéticas.

Depois de alguns instantes em que apenas ou­víamos os soluços de Odila transformada, a vene­rável amiga acentuou:
— Porque não te dispões a clarear o próprio caminho, a fim de reencontrares o teu anjo e embalá-lo, de novo, em teus braços, ao invés de te consagrares inutilmente à vingança que te cega os olhos e enregela o coração?

Clara, certo, alcançara o ponto sensível daque­la alma atribulada, porque a infortunada genitora de Evelina, qual se arrojasse para fora de si mes­ma todos os pesares que lhe senhoreavam os sen­timentos, gritou, como fera jugulada pela dor:
— Meu filho!... Meu filho!...

E seu pranto convulsivo se fêz mais angustia­do, mais comovente.
A emissária do bem abraçou-a com maternal carícia e falou-lhe aos ouvidos:

— Rejubila-te, irmã querida! Grande é a tua felicidade! Podes ajudar e isso representa a ventura maior! Nada te impede auxiliar o companheiro da humana experiência, ao alcance de tuas mãos, e basta uma prece de amor puro, com o testemu­nho de tua compreensão e de tua piedade, para que venças a reduzida distância entre o teu sofri­mento e o filhinho idolatrado!... Há vinte e dois séculos espero por um minuto igual a este para o meu saudoso e agoniado coração, de vez que os meus amados ainda não se inclinaram para mim!

A voz de Clara parecia mesclada de lágrimas que não chegavam a surgir.
Dominada pelas vibrações da mensageira ce­leste, Odila agarrou-se a ela, prosseguindo em cho­ro convulso, enquanto a instrutora repetia com desvelos de mãe:

— Vamos, filha! Vamos à procura de nossa renovação com Jesus!...
Amparando-a, Clara conduziu-a para fora, co­lada ao próprio peito.

Junto de nós, Clarêncio informou:

— Agora, Zulmira poderá recuperar-se. A ad­versária retirou-se sem a violência que lhe prejudi­caria o campo mental.

E, acompanhando o nosso orientador, afastamo­-nos por nossa vez, embora conservando a atenção presa à continuação de nossa edificante aventura.

Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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