sábado, 1 de fevereiro de 2014

IRMÃ CLARA

Na noite imediata às experiências que descre­vemos, o Ministro convidou-nos a visitar a Irmã Clara, a quem pediria socorro em favor do escla­recimento de Odila.
Eu me sentia cada vez mais atraído para o romance vivo daquele grupo de almas que o destino enleara em suas teias.
Se me fosse permitido, voltaria de imediato para junto de Mário Silva rebelado, ou para junto de Amaro paciente, a fim de observar o desdobra­mento da história, cujos capítulos jaziam gravados nas páginas vivas de seus corações.
Todavia, era necessário esperar.

Enquanto buscávamos a intimidade de Clara, descia o luar em prateados jorros sobre a paisagem que se tapizava de flores.
Com o cérebro preso às preocupações resul­tantes do trabalho que nos exigia a atenção, algo indaguei de Clarêncio quanto à cooperação que pre­tendíamos solicitar.

Por que motivo rogaria ele o concurso de ou­trem, quando se dirigira com tanto êxito à mente de Esteves e Armando, reencarnados? não lhes favorecera o retrocesso da memória, até os recuados dias da luta no Paraguai? porque não conse­guiria doutrinar também a desditosa irmã enferma?

O Ministro ouviu-me, tolerante, e redargüiu:

— Iludes-te. Nem sempre doutrinar será trans­formar. Efetivamente, guardo alguma força magnética suficientemente desenvolvida, capaz de ope­rar sobre a mente de nossos companheiros em recuperação; no entanto, ainda não disponho de sentimento sublimado, suscetível de garantir a re­novação da alma. Sem dúvida, dentro de minhas limitações, estou habilitado a falar à inteligência, mas não me sinto à altura de redimir corações. Para esse fim, para decifrar os complicados labirintos do sofrimento moral, é imprescindível haver atingido mais elevados degraus na humana com­preensão.

Dispunha-me a desfechar novo interrogatório, contudo, nosso orientador indicou-nos bela edifica­ção próxima.

Cercada de arvoredo, que servia de enfeite a espaçosos canteiros de flores, a residência de Clara figurou-se-nos pequeno colégio ou gracioso inter­nato para moças.

Até certo ponto, não nos enganáramos.

A nossa anfitriã não morava num estabeleci­mento de ensino, entretanto, mantinha em casa um verdadeiro educandário, tão grandes e luzidas eram as assembleias instrutivas que sabia orga­nizar.

Recebeu-nos em extenso salão, onde era aten­ciosamente ouvida por quatro dezenas de alunos de variadas condições, que se instalavam à vontade, em grupos diversos, sem qualquer idéia de escola assinalando o ambiente em sua feição exterior.

De olhos rasgados e lúcidos a lhe marcarem magnificamente o semblante com os traços aristo­cráticos do rosto emoldurados pela vasta cabeleira, Clara parecia uma jovem madona, detida entre os melhores dons da mocidade e da madureza. Es­tendeu-nos as mãos pequenas e finas, responden­do-nos às saudações com alegria sincera.

Nosso orientador rogou excusas, pela nossa interferência no trabalho.

— Não se incomodem — acentuou a interlo­cutora, encantadoramente natural —, achamo-nos num curso rápido, acerca da importância da voz a serviço da palavra. Podem partilhá-lo conosco. Nossa aula é uma simples conversação...

Fitando bondosamente o Ministro, rematou:

— Sentem-se. Sou eu quem pede perdão por fazê-los esperar mais um pouco. Em breves instantes, todavia, entraremos em nosso entendimento mais íntimo.

E, voltando à poltrona que nada tinha de cá­tedra, sem qualquer atitude professoral, tao gran­de era o doce ambiente de maternidade que sabia irradiar de si, começou a dizer para os aprendizes:

— Conforme estudamos na noite de hoje, a palavra, qualquer que ela seja, surge invariávelmente dotada de energias elétricas específicas, li­bertando raios de natureza dinâmica. A mente, como não ignoramos, é o incessante gerador de força, através dos fios positivos e negativos do sentimento e do pensamento, produzindo o verbo que é sempre uma descarga electromagnética, regu­lada pela voz. Por isso mesmo, em todos os nossos campos de atividade, a voz nos tonaliza a exterio­rização, reclamando apuro de vida interior, de vez que a palavra, depois do impulso mental, vive na base da criação; é por ela que os homens se apro­ximam e se ajustam para o serviço que lhes com­pete e, pela voz, o trabalho pode ser favorecido ou retardado, no espaço e no tempo.

Dentro da pausa ligeira que se fizera espon­tânea, simpática senhora interrogou:

— Mas, para que tenhamos a solução do pro­blema, é indispensável jamais nos encolerizarmos?

— Sim — elucidou a instrutora, calma —, indiscutivelmente, a cólera não aproveita a ninguém, não passa de perigoso curto-circuito de nos­sas forças mentais, por defeito na instalação de nosso mundo emotivo, arremessando raios destrui­dores, ao redor de nossos passos...

Sorrindo bem humorada, acrescentou:

— Em tais ocasiões, se não encontramos, jun­to de nós, alguém com o material isolante da ora­ção ou da paciência, o súbito desequilíbrio de nossas energias estabelece os mais altos prejuízos à nos­sa vida, porque os pensamentos desvairados, em se interiorizando, provocam a temporária cegueira de nossa mente, arrojando-a em sensações de remoto pretérito, nas quais como que descemos quase sem perceber a infelizes experiências da animalidade in­ferior. A cólera, segundo reconhecemos, não pode e nem deve comparecer em nossas observações, re­lativas à voz. A criatura enfurecida é um dínamo em descontrole, cujo contacto pode gerar as mais estranhas perturbações.

Um moço, com evidente interesse nas lições, argumentou:

— E se substituíssemos o termo «cólera» pelo termo «indignação»?

Irmã Clara pensou alguns instantes e redar­guiu:

— Efetivamente, não poderíamos completar os nossos apontamentos, sem analisar a indignação como estado d'alma, por vezes necessário. Natural­mente é imprescindível fugir aos excessos. Contra­riar-se alguém a propósito de bagatelas e a todos os instantes do dia será baratear os dons da vida, desperdiçando-os, de modo inconsequente, sem o mínimo proveito para si mesmo ou para os outros. Imaginemos a indignação por subida de tensão na usina de nossos recursos orgânicos, criando efeitos especiais à eficiência de nossas tarefas. Nos casos de exceção, em que semelhante diferença de poten­cial ocorre em nossa vida íntima, não podemos es­quecer o controle da inflexão vocal. Assim como a administração da energia elétrica reclama aten­ção para a voltagem, precisamos vigiar a nossa indignação principalmente quando seja imperioso vertê-la através da palavra, carregando a nossa voz tão somente com a força suscetível de ser apro­veitada por aqueles a quem endereçamos a carga de nossos sentimentos. É indispensável modular a expressão da frase, como se gradua a emissão elétrica...

E, ante a assembléia que lhe registrava os en­sinamentos com justificável respeito, prosseguiu, depois de ligeiro intervalo:

— Nossa vida pode ser comparada a grande curso educativo, em cujas classes inumeráveis da­mos e recebemos, ajudamos e somos ajudados. A serenidade, em todas as circunstâncias, será sempre a nossa melhor conselheira, mas, em alguns aspec­tos de nossa luta, a indignação é necessária para marcar a nossa repulsa contra os atos deliberados de rebelião ante as Leis do Senhor. Essa elevada tensão de espírito, porém, nunca deve arrojar-se à violência e jamais deve perder a dignidade de que fomos investidos, recebendo da Divina Confiança a graça do conhecimento superior. Basta, dentro dela, a nossa abstenção dos atos que íntimamente reprovamos, porque a nossa atitude é uma corrente de indução magnética. Em torno de nós, quem simpatiza conosco geralmente faz aquilo que nos vê fazer. Nosso exemplo, em razão disso, é um fulcro de atração. Precisamos, assim, de muita cau­tela com a palavra, nos momentos de tensão alta do nosso mundo emotivo, a fim de que a nossa voz não se desmande em gritos selvagens ou em considerações cruéis que não passam de choques mortíferos que infligimos aos outros, semeando espinheiros de antipatia e revolta que nos prejudi­carão a própria tarefa.

Um amigo que acompanhava os ensinamentos, com interesse invulgar, perguntou, respeitoso:

— Irmã Clara, como devemos interpretar as perturbações da voz, como, por exemplo, a gaguez e a diplofonia?

— Sem dúvida — informou a instrutora, solí­cita —, os órgãos vocais experimentam igualmente lutas e provações quando reclamam reajuste. Por intermédio da voz, praticamos vários delitos de ti­rania mental e, através dela, nos cabe reparar os débitos contraídos. As enfermidades dessa ordem compelem-nos ao trabalho de recuperação no si­lêncio, de vez que, sofrendo a alheia observação, aprendemos pouco a pouco a governar os próprios impulsos, afeiçoando-os ao bem.

A orientadora, que falava com absoluta sim­plicidade e à maneira de um anjo maternal dirigindo-se aos filhinhos, comentou, ainda por alguns minutos, o tema singular com surpreendente pri­mor de definição.

Depois, finda a aula, permaneceram no belo domicílio tão somente algumas jovens que encontravam em nossa anfitriã desvelada benfeitora.

Clara convidou-nos a pequena peça contígua e o Ministro deu-lhe a conhecer o objetivo de nossa visitação. Alguém na Terra precisava ouvi-la, a fim de modificar-se. A interlocutora perguntou, com carinho, quanto às particularidades do serviço que pretendíamos realizar.

Clarêncio resumiu o drama que nos empolgava a atenção.

Quando se inteirou de que amargurada mulher devia renunciar ao companheiro que permanecia na Terra, vimos imensa compaixão se lhe estampar no rosto. Seus olhos enevoaram-se de lágrimas que não chegaram a cair...

Compreendi que a nobre instrutora, aureolada de soberanos valores morais, trazia consigo profun­das mágoas imanifestas. Certamente, buscávamos reconforto para um coração infeliz num coração que talvez estivesse padecendo ainda mais...

— Pobre criatura! — disse a orientadora, co­movida.

E, afirmando-se com tempo bastante para au­sentar-se, acolheu-nos o apelo e dispôs-se a seguir-nos generosamente.


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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