terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

CASAMENTO FELIZ

A tempestade de sentimentos, no grupo de almas sob nossa observação, amainou, pouco a pouco...
Júlio, na vida espiritual, aguardava sem so­frimento a ocasião oportuna de regresso ao campo físico, e Zulmira, sob a influência benéfica de An­tonina, renovara-se para a alegria de viver.
Mário Silva, transformado pela orientação da jovem viúva, afeiçoara-se a ela profundamente, ha­bituando-se-lhe ao convívio.
Sólida amizade fizera-se entre as personagens de nossa história.
Semanalmente se visitavam, com intraduzível contentamento para Evelina, que se convertera em pupila de Antonina, tão grande a afinidade que lhes caracterizava as predileções e tendências.
O templo doméstico de Amaro transfigurara-se.
O otimismo infiltrara-se, ali, consolidando mo­radia nos corações.
Passeios domingueiros começavam a surgir, e Silva, agora unido a todos, parecia voltar à juventude nascente.
A camaradagem social modificara-lhe a feição.
Perdera a taciturnidade em que se mergulha a maioria dos solteirões.
Lisbela apegara-se a ele com extremado cari­nho e os irmãos Haroldo e Henrique dele fizeram o confidente de todas as realizações infantis.
Várias vezes Amaro e a esposa acompanharam com amoroso respeito o culto evangélico na resi­dência de Antonina, retirando-se, edificados e fe­lizes. Aquela moça, viúva e digna, cada vez crescia mais na admiração deles e, dentro de suas limi­tadas possibilidades, o ferroviário começou a fazer pela educação inicial dos meninos quanto lhe era possível, associando o enfermeiro em todos os seus empreendimentos em semelhante direção.
Certa manhã de claro domingo, achávamo-nos de passagem no domicílio de Amaro, ainda em ser­viço da saúde de Zulmira, quando Silva veio ao encontro do amigo para aguardar a chegada de Antonina com as crianças. Todo o grupo familiar combinara um almoço, ao ar livre, em parque pró­ximo.
O Ministro, manifestando um olhar de satis­fação, comentou:
— Graças a Jesus, vemos nosso enfermeiro efetivamente modificado. Mais alegre, acessível, bem disposto...
— Dir-se-ia que uma revolução explodiu den­tro dele — asseverei, concordando.
— O amor é assim — acentuou nosso instru­tor, imperturbável —, uma força que transforma o destino.
Talvez porque Hilário ensaiasse malicioso sor­riso, o orientador acrescentou:
— Pude consultar o programa traçado para a reencarnação de Antonina, quando em nossas atividades de socorro ao irmão Leonardo Pires, e sei que ela se comprometeu a colaborar, maternalmente, para que ele obtenha novo corpo na Terra. Na condição de Lola Ibarruri, foi a causa do enve­nenamento que lhe exterminou a paz íntima, falta essa que nossa irmã, na atualidade, espera ressar­cir. Acariciará por filho do coração quem lhe foi outrora companheiro de aventuras, encaminhando-lhe a educação de ordem superior...
O apontamento nos comovia.
Admirado, Hilário obtemperou:
— Silva, desse modo...
Clarêncio, contudo, interrompeu-lhe a frase, completando:
— Silva e Leonardo enlaçaram-se em compli­cadas dívidas um para com o outro. Desde muito tempo, cultivam o espinheiro da aversão recíproca. Induzidos agora às teias da consangüinidade, espe­ramos se reeduquem. Da Lei ninguém foge...
Como se a mente do ferroviário nos sorvesse a conversação, ligando-se a nós pelos fios invisíveis do pensamento, vimos Amaro bater, de leve, nos ombros do companheiro, dizendo-lhe, conselheiral:
— Escuta, Mário. Não me assiste o direito de qualquer interferência em tua vida, entretanto, sen­tindo-te por meu irmão, venho refletindo acerca do futuro... Não te parece que Antonina seja a mu­lher digna do teu ideal de homem de bem?
O interpelado corou, encabulando-se, e porque nada respondesse, o amigo prosseguiu:
— Desde o teu regresso à nossa amizade, ob­servo com respeito crescente a distinção dessa mu­lher, cuja aproximação tem sido uma bênção em nossa casa. Moça ainda, pode fazer a felicidade de um lar que seria um santuário para as tuas expe­riências. Comove-me anotar-lhe os sacrifícios de mãe jovem, quando, com a tua aliança, preservaria a própria saúde, indiscutivelmente tão preciosa a tanta gente. Já me inteirei da posição dela na fá­brica em que trabalha. É querida de todos. Para muitas colegas, tem sido a enfermeira e a irmã abnegada de sempre. Seus chefes veneram-lhe a conduta irrepreensível. Isso é admirável numa viú­va de apenas trinta e dois anos.
Além disso, repa­ro-lhe os filhinhos unidos ao teu coração, como se te pertencessem. Não te dói vê-la enfrentar sózinha
 a batalha em que se consome?
O enfermeiro, algo refeito da estupefação que lhe assomara do íntimo, replicou, humilde:
— Compreendo... Tenho examinado essa pos­sibilidade, no entanto, não sou mais uma criança...
— Por isso mesmo — revidou o amigo, enco­rajado — a hora presente exige método, reconforto, proteção... Um pouso doméstico é investi­mento dos mais preciosos para o futuro.
— No entanto, considero que o coração no meu peito assemelha-se a um pássaro entorpecido. Sin­to-me francamente incapaz de uma paixão...
— Que tolice! — ajuntou o interlocutor, bem humorado — a felicidade é quase impraticável nas afeições impulsivas que estouram do sentimento à maneira de champanha ilusória...
E, sorrindo, acentuou:
— O amor dos namorados, com noventa graus à sombra, por vezes é simples fogo de palha, dei­xando apenas cinza. À medida que se me alonga a experiência no tempo, reconheço que o matrimô­nio, acima de tudo, é união de alma com alma. Falo com o discernimento do homem que se con­sorciou por duas vezes. A paixão, meu caro, é res­ponsável por todas as casas de boneca que ofere­cem por aí espetáculos dos mais tristes. A amizade pura é a verdadeira garantia da ventura conjugal. Sem os alicerces da comunhão fraterna e do res­peito mútuo, o casamento cedo se transforma em pesada algema de forçados do cárcere social.
Mário ouvia as reflexões do companheiro, entre enlevado e surpreso.
Sim, pensava, desde que se aproximara de An­tonina, pela primeira vez, nela sentira a mulher ideal, capaz de entender-lhe o coração.
Devotara-se a ela e aos três pequeninos com imenso carinho e inexcedível confiança.
Aquele lar generoso e singelo incorporara-se-lhe à existência.
Se fosse compelido à separação, por qualquer circunstância, indubitavelmente se sentiria lesado em suas mais caras alegrias...
Enquanto Amaro se confiava às considera­ções do minuto rápido, Silva ia memorando, memorando...
A figura de Antonina penetrava-lhe agora os recessos do coração. O valor e a humildade com que a nobre criatura afrontava os mais difíceis pro­blemas tocavam-lhe as fibras recônditas do ser.
O sacrifício permanente pelos filhos, realizado com sincera alegria, o desprendimento natural das futi­lidades que costumam cegar o sentimento feminino, a solidariedade humana com que sabia pautar as relações com o próximo e, sobretudo, o caráter cristalino de que dava provas em todos os lances da vida comum, apareciam, naquele instante, em sua imaginação, de modo diferente...
Absorto, parecia contemplar as roseiras lá fora, indiferente ao mundo exterior.
Longos momentos passou, assim, revivendo e meditando o passado.
Em seguida, como se despertasse de longa fuga mental, encarou o amigo frente a frente e con­cordou:
— Amaro, tens razão. Não posso desobedecer ao comando da vida.
Não puderam, contudo, prosseguir.
A viúva e os filhinhos chegaram, felizes, pro­vocando a presença de Zulmira e Evelina que vieram à recepção, alegremente.
Deixamos nossos amigos na doce algazarra da intimidade doméstica e voltamos ao nosso templo de serviço.
Muitas indagações assaltavam-nos o pensamen­to, todavia, Clarêncio limitou-se a dizer:
— O tempo é como a onda. Flui e reflui. Da nossa sementeira havemos de colher.
Transcorridos alguns dias, amigos espirituais de Antonina trouxeram-nos as boas novas do con­trato promissor.
Mário e a jovem viúva esperavam efetuar o matrimônio em breves dias.
Visitamos o futuro casal, diversas vezes, antes do enlace, que todos nós aguardávamos, contentes.
Amaro e Zulmira, reconhecidos aos gestos de amizade e carinho que recebiam constantemente dos noivos, ofereceram o lar para a cerimônia que, no dia marcado, se realizou com o ato civil, na mais acentuada simplicidade.
Muitos companheiros de nosso plano acorreram à residência do ferroviário, inclusive as freiras de­sencarnadas que consagravam ao enfermeiro par­ticular estima.
A casa de Zulmira, enfeitada de rosas, regor­gitava de gente amiga.
A felicidade transparecia de todos os sem­blantes.
À noite, na casinha singela de Antonina, reu­niram-se quase todos os convidados, novamente.
Os recém-casados queriam orar, em companhia dos laços afetivos, agradecendo ao Senhor a ven­tura daquele dia inolvidável.
O telheiro humilde jazia repleto de entidades afetuosas e iluminadas, inspirando entusiasmo e esperança, júbilo e paz.
Quem pudesse ver o pequeno lar, em toda a sua expressão de espiritualidade superior, afirmaria estar contemplando um risonho pombal de ale­gria e de luz.
Na salinha estreita e lotada, um velho tio da noiva levantou-se e dispôs-se à oração.
Clarêncio abeirou-se dele e afagou-lhe a cabe­ça que os anos haviam encanecido, e seus engelha­dos lábios, no abençoado calor da inspiração com que o nosso orientador lhe envolvia a alma, pro­nunciaram comovente rogativa a Jesus, suplican­do-lhe que os auxiliasse a todos na obediência aos seus divinos desígnios.
Lágrimas serenas velavam-nos o olhar.
Terminada a prece, Haroldo, Henrique e Lis-bela, vestidos de branco, distribuiram licores e gu­loseimas.
Emocionados, acercamo-nos dos nubentes para as despedidas.
Abraçando-os, vimos junto deles que Eveli­na, no fulgor de sua primavera juvenil, aceitava a proteção carinhosa de um rapaz que a fitava, enamorado.
O Ministro sorriu e explicou-nos:
— Este é Lucas, irmão de Antonina, atual­mente futuroso gráfico na capital paulista, cuja bela formação espiritual associar-se-á, em breve, com a primogênita de Amaro, para a execução das tarefas que a esperam no mundo.
Cortando-nos a possibilidade de excessivas in­quirições, o instrutor acrescentou:
— Tudo é amor no caminho da vida. Apren­damos a usá-lo na glorificação do bem, com o nos­so próprio trabalho, e tudo será bênção.
Retiramo-nos, satisfeitos.
E porque o dever nos convocava à distância, seguimos à frente, tentando assimilar com o nosso abnegado orientador a preciosa conjugação do ver­bo servir.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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