segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

CARINHO REPARADOR

Odila, sob o patrocínio da irmã Clara, foi in­ternada numa instituição de tratamento, por alguns dias, e, durante sete noites consecutivas, visitamos Zulmira, em companhia de nosso orientador, a fim de auxiliar o soerguimento dela.

A segunda esposa de Amaro mostrava-se me­lhor. Mais silenciosa. Mais calma.
Não saíra, porém, da inércia a que se reco­lhera.
Alijara a excitação de que se via objeto, mas prosseguia entregue a extrema prostração.
Subnutrida, apática, sustentava-se no mais ab­soluto desânimo.

Atendendo-nos à inquirição habitual, Clarên­cio observou, prestimoso:
— Acha-se agora liberta, contudo, reclama es­tímulo para subtrair-se à exaustão. Falta-lhe a vontade de lutar e viver. Confiemos, no entanto. A própria Odila favorecer-lhe-á a recuperação. A medida que se lhe restaure a visão espiritual, a primeira esposa de Amaro aceitará o imperativo de renúncia e fraternidade para construir o futuro que lhe interessa.
Zulmira, com efeito, continuava livre e tran­quila.

As peças do corpo funcionavam com irrepreen­sível harmonia, mas, efetivamente, algo prosseguia faltando...
A máquina mostrava-se reequilibrada, entre­tanto, mantinha-se preguiçosa, exigindo adequadas providências.

Transcorrida uma semana, Irmã Clara convi­dou-nos a breve entendimento.
Comunicou-nos que Odila revelava grande transformação.
Submetida à assistência magnética, a fim de sondar o passado, reconhecera o impositivo de sua colaboração com o marido para alcançarem ambos a vitória real nos planos do espírito.

Suspirava pelo reencontro com o filhinho, dis­punha-se a tudo fazer para ser útil ao esposo e à filhinha...

E, para tanto, combateria a repulsa espontâ­nea que experimentava por Zulmira, a quem auxiliaria como irmã, reajustando-se devidamente para fortalecê-la e ampará-la.
A benfeitora mostrava-se satisfeita.
Recomendava-nos trouxéssemos Amaro, tão logo pudesse ele ausentar-se do veículo físico, na noite próxima, até à casa espiritual de refazimento em que Odila se encontrava.
Do entendimento entre ambos, resultariam de­certo os melhores efeitos.
A mãezinha de Evelina estava reformada e daria provas do reajuste, efetuando o primeiro esforço para a reconciliação.
A solicitação de Clara foi alegremente aten­dida.

Depois de meia-noite, quando o ferroviário se rendeu à branda influência do sono, guiamo-lo ao sítio indicado.
No aposento claro e florido do santuário de recuperação em que Odila se localizava, aguardava-nos a instrutora junto dela.

O pai de Júlio, que seguia menos consciente ao nosso lado, em reconhecendo a presença da mu­lher que amava, ajoelhou-se, cobrou a lucidez que lhe era possível em tais circunstâncias, e excla­mou, enlevado:

— Odila!... Odila!...

— Amaro! — respondeu a antiga companhei­ra, então completamente transfigurada — sou eu! sou eu quem te pede coragem e fé, serenidade e valor na tarefa a realizar!...
— Estou farto, farto... — clamou ele, agora em lágrimas a lhe verterem, copiosas.

Odila, sustentada pela venerável amiga, levan­tou-se com alguma dificuldade e, alisando-lhe os cabelos, perguntou, em voz comovida:
— Farto de quê?
— Sinto-me entediado da vida... Casei-me, de novo, como deves saber, acreditando garantir a se­gurança de nossos filhos para o futuro, entretanto, a mulher que desposei nem de longe chega a teus pés... Fui ludibriado! Em lugar da felicidade, en­contrei o desapontamento que não sei disfarçar!...
E, fitando-a com enternecedora expressão, co­mentou, triste:
— Nosso Júlio morreu num desastre, quando encerrava para mim as melhores aspirações, nossa filha se estiola num quarto sem alegria e a ma­drasta que lhes impus apodrece num leito!...

Ah! Odila, poderás compreender o que sofro? Tenho rogado a morte ao Céu para que nos reunamos na eternidade, mas a morte não vem...

A esposa, compreensivelmente mais bela pelos pensamentos redentores que agora lhe imanavam do ser, com os olhos enevoados de pranto, falou-lhe com inflexão inesquecível:
— Sim, Amaro, compreendo! Também eu pa­deci muito, no entanto, hoje reconheço que a nossa dor é agravada por nós mesmos... Porque have­mos de converter a distância em rebelião e a sau­dade em venenoso fel? porque não reconhecer a Majestade Suprema de Deus, na orientação de nos­sos destinos? não temos sabido cultivar o amor que é sacrifício na Terra para a edificação de nosso paraíso espiritual... Temos exigido quando deve­mos dar, dilacerado quando nos cabe recompor!... Amaro, é preciso acalmar o coração para que a vida nos auxilie a entendê-la, é indispensável ceder de nós, a fim de receber dos outros o concurso de que necessitamos... Na aspereza de meus sen­timentos deseducados, vinha eu adubando o espi­nheiro do ciúme, atormentando-te o pensamento e perturbando a nossa casa! Mas, em alguns dias rápidos, adquiri mais ampla penetração em nossos problemas, usando a chave da boa vontade!... Quero melhorar-me, progredir, reviver...

O ferroviário contemplou-a, carinhoso e reve­rente, e acentuou, desalentado:
— Isso não impede a terrível realidade. Acha­mo-nos em dois mundos diferentes... Infortunado que sou! sinto-me desarvorado e infeliz!...
— Achava-me igualmente assim, contudo, pro­curei no silêncio e na oração o roteiro renovador.
— Que fazer de Zulmira, colocada entre nós como empecilho à nossa verdadeira união?
— Não raciocines desse modo! ela não perma­neceria em tua estrada sem motivo justo.

Nesse instante, Clarêncio abeirou-se do ferroviário e, tocando-lhe a fronte com a destra, ofere­ceu-lhe ao campo mental o retorno imediato às recordações das dívidas por ele contraídas no Pa­raguai.
Amaro estremeceu e continuou escutando.
— Se Zulmira foi situada no templo de nosso amor — prosseguiu Odila, admiravelmente inspirada —, é que nosso amor lhe deve a bênção da felicidade de que nos sentimos possuídos...
— Sim... sim... — aprovava agora o inter­locutor, de posse das reminiscências fragmentárias que lhe assomavam do coração.
— Interpretemo-la por nossa filha, por irmã de Evelina, cujos passos nos compete encaminhar para o bem. O lar não é apenas o domicílio dos corpos... É o ninho das almas, em cujo doce aconchego desenvolvemos as asas que nos trans­portarão aos cumes da glória eterna. Aceitemos a provação e a dor, como abençoadas instrutoras de nossa romagem para Deus...
— Todavia — ponderou o moço, triste —, sa­bes quanto te amo!...

— Não ignoras, por tua vez, que o teu coração constitui para mim o tesouro maior da vida, en­tretanto, hoje vejo o horizonte mais largo... Va­leria realmente o brilho dos oásis fechados? Serviria a construção de um palácio, em pleno deserto, onde estaríamos humilhando com a nossa saciedade os viajores que passassem por nós, mortificados de sede e fome? como categorizar o carinho que se pervertesse no isolamento, a pretexto de con­servar a ventura só para si?
Renovemo-nos, Ama­ro! Nunca é tarde para recomeçar o bem!... Tra­balhemos, valorizando o tempo e a vida!...

Tocado talvez nas fibras mais Íntimas, o pai de Evelina chorava convulsivamente, infundindo piedade...
Odila enlaçou-o com mais ternura e Clara con­vidou-nos a excursão através do grande jardim próximo.

A breves instantes, achávamo-nos em plena contemplação do céu...
Os dois cônjuges instalaram-se em perfumado recanto para a conversação a sós.

Notamos que a orientadora se preocupava em deixá-los entregues um ao outro, para mais seguro ajuste espiritual. E, enquanto ambos se recolhiam a confortadoras confidências, distanciamo-nos, de algum modo, admirando a beleza da noite.

Maravilhoso, o firmamento cintilava.
Longínquas constelações como que nos acena­vam, indicando glorioso futuro...
Virações suaves deslizavam, de leve, quais se fossem cariciosas e intangíveis mãos do vento, animando-nos a cabeça.
Flores de rara beleza vertiam do cálice raios de claridade diurna, como pequeninos e graciosos reservatórios do esplendor solar.

Irmã Clara fascinava-nos com a sua palavra brilhante. Com simplicidade encantadora, comentava suas viagens a outras esferas de trabalho e realização, exaltando em cada narrativa o amor e a sabedoria do Pai Celestial.

Por largo tempo, embevecidos, permutamos im­pressões acerca da excelsitude da vida que se nos revela sempre mais surpreendente e mais bela, em cada plano da Criação.

Avizinhava-se o novo dia...

Tornamos à presença do casal para devolver o companheiro ao lar terrestre. Ambos, ao término do grande entendimento, apresentavam o rosto pacificado e radiante.
Irmã Clara guardou a pupila nos braços e as duas seguiram-nos a romagem de volta.

Em casa, Amaro despediu-se de nós, risonho e calmo.

Dispúnhamo-nos à retirada, quando a instru­tora nos advertiu:
— Esperemos. Odila retomará hoje a tarefa.
O relógio marcava seis da manhã.
À maneira de colegial em dia de prova, a trans­figurada mãezinha de Júlio fitava-nos com extrema expectação...

Amaro recuperou o corpo físico, descerrando os olhos com excelentes disposições.
Não conseguira relacionar os aspectos parti­culares da excursão, mas conservava no cérebro a indefinível certeza de que estivera com a primei­ra esposa em “algum lugar” e que a vira reani­mada e feliz.
Distendeu os braços com a deliciosa tranqui­lidade de quem encontra o fim de longa e aflitiva tensão nervosa.
Levantou-se, reparando que o dia começava alegre e lindo, sem dar conta de que a alegria e a beleza haviam renascido nele próprio.
Sentia vontade de rir e cantar...
E, depois de ausentar-se do banheiro, onde cantarolou baixinho uma canção que lhe recordava o tempo em que se consorciara pela primeira vez, tornou, sorridente, ao quarto de dormir.

Foi então que Odila o enlaçou carinhosamente e exclamou:
— Vamos, querido! Estendamos a nossa feli­cidade! Zulmira espera por nosso amor...


Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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