quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

PONDERAÇÕES

Decorrido um mês sobre os esponsais de Silva, certa noite, por solicitação de Odila, fomos em busca de Zulmira e Antonina para uma reunião íntima, no Lar da Bênção.
Ambas, alegres, revelavam-se enlevadas fora do corpo denso.
Enlaçadas e felizes, contemplavam a Terra e o Céu, tocadas de sublime esperança.
Reduzida assembleia de amigos aguardava-nos no domicílio de Blandina, em meio de cativantes manifestações de carinho e de apreço.
Dentre todas as afeições presentes, sobreleva­va-se Irmã Clara, que viera igualmente ter conosco.
As duas excursionistas, ao contacto daquele ambiente de genuína fraternidade, rendiam-se ao êxtase da paz e da alegria.
Afigurava-se-lhes haver encontrado o paraíso, tão pura se lhes desenhava no semblante a exal­tação interior.
No recinto amplo que Blandina adornara de flores, permutavam-se frases amigas e consolado­ras impressões.
Multiplicadas notas de beleza enriqueciam a conversação, quando Antonina, mais lúcida que a companheira, indagou pela razão do favor de que se viam aquinhoadas.
O reconhecimento transbordava-lhes do cora­ção, à maneira do perfume a evadir-se do frasco.
Clara afagou-a, de leve, e explicou, maternalmente:
— Filhas, em nossa romagem na vida, atra­vessamos épocas de sementeira e fases de colheita.
Na missão da mulher, até agora, vocês receberam do tempo os choques e os enigmas plantados à dis­tância. Com a humildade e a fé, com o bom âni­mo e o valor moral, venceram árduos conflitos que lhes fustigavam as melhores aspirações. Foram dias obscuros do pretérito refletidos no presente, contu­do, agora, asserenou-se-lhes a estrada. A paciên­cia a que se devotaram evitou a formação de nuvens da revolta e o céu se fêz, de novo, claro e alen­tador. É como se o dia renascesse, resplendente de luz, o campo da existência exige mais trabalho e o tempo de semear ressurge alvissareiro.
A palestra em torno cessara de repente.
Os circunstantes buscavam ouvir a benfeitora, significando, com o silêncio, que nela se encarnava para nós a sabedoria.
Depois de ligeiro intervalo, nossa amiga con­tinuou:
— Agora, que a oportunidade favorece a re­novação, é preciso saber reconstruir o destino.
Não olvidemos. A vida reduz-se a triste montão de tre­vas, quando não se faz plena de trabalho. Fujamos à velha feira da lamentação onde a inércia vende os seus frutos amargosos! Para levantar, porém, a escada de nossa ascensão, é imprescindível ba­nhar o espírito, cada dia, na fonte viva do amor, do amor que recompensa a si mesmo com a ale­gria de dar! O Pai Celeste é onipresente, através do amor de que satura o Universo. O sentimento divino é a corrente invisível em que se equilibram os mundos e os seres. Do Trono Excelso nasce o eterno manancial que sustenta o anjo na altura e alimenta o verme no abismo. A mulher é uma taça em que o Todo-Sábio deita a água milagrosa do amor com mais intensidade, para que a vida se engrandeça. Irmãs, sejamos fiéis ao mandato recebido. Em muitas ocasiões, quando nos prende­mos à lama do egoísmo ou ao visco do ódio, po­luímos o líquido sagrado, transformando-o em ve­neno destruidor.
Guardemos cautela, O preço da verdadeira paz reside no sacrifício de nossas exis­tências. Não há sublimação sem renúncia no caste­lo da alma, como não há purificação no cadinho, sem o concurso do fogo que acrisola os metais!...
Clara fitou Antonina, de modo particular, e aduziu:
— Filha, nossa Zulmira compreende hoje, sem necessidade de maior incursão no passado, o santo dever de asilar o pequeno Júlio no santuário ma­terno. -.
Percebemos que a instrutora, registrando o im­perativo do descanso mental para a segunda esposa do ferroviário, que vinha de terminar longas re­fregas na preservação da própria saúde, buscava poupar-lhe exercícios mnemônicos.
— Nossa amiga — prosseguiu, indicando Zul­mira com o olhar — está consciente de que a ma­ternidade a espera de novo, em tempo breve... E você?
Com a irradiante bondade que habitualmente lhe marcava a expressão fisionômica, acentuou:
— Recorda-se das experiências antigas e per­manece atenta às razões que lhe inspiraram o segundo matrimônio?
Ante a surpresa que se estampou no semblante da interpelada, a orientadora, num gesto que nos era conhecido, nas operações magnéticas de Cla­rêncio, acariciou-lhe a fronte, de leve, e repetiu:
— Lembre-se! lembre-se!...
Bafejada pelo poder de Irmã Clara, em deter­minados centros da memória, Antonina fêz-se pá­lida e exclamou, controlando a própria emoção:
— Sim, sou eu a cantora! Revejo, dentro de mim, os quadros que se foram!... Os conflitos no Paraguai!... Uma chácara em Luque!... a família ao abandono!... José Esteves, hoje Mário... Sim, percebo o sentido de minhas segundas núpcias!...
Denotando aflição no olhar, acrescentou:
— E Leonardo? onde está Leonardo, o infeliz?
— Não precisa dilatar reminiscências — disse Clara, bondosa —; não nos achamos num gabinete de experimentos e sim numa reunião fraternal.
Fitando-a significativamente, ajuntou:
— Basta que você se recorde.
Em seguida, repartindo a atenção entre as duas, prosseguiu:
— Brevemente, vocês serão chamadas a novo esforço, no apostolado materno. Zulmira recolherá o nosso Júlio na concha do coração e você, Antonina, restituirá a Leonardo Pires, seu avô e asso­ciado de destino, o tesouro do corpo terrestre. No santuário doméstico, as afeições transviadas se re­compõem, a fim de que possamos demandar o futuro, ao clarão da felicidade.
Filhas, ninguém avança sem saldar as próprias contas com o pas­sado. Paguemos, desse modo, os débitos que nos aprisionam aos círculos inferiores da vida, aprovei­tando o tempo de detenção no resgate, em maior aprimoramento de nós mesmas. Amemos, aperfei­çoando-nos!
Identifiquemos no lar humano o cami­nho de nossa regeneração! A família consanguínea na Terra é o microcosmo de obrigações salvadoras em que nos habilitamos para o serviço à família maior que se constitui da Humanidade inteira, O parente necessitado de tolerância e carinho representa o ponto difícil que nos cabe vencer, valen­do-nos dele para melhorar-nos em humildade e compreensão. Um pai incompreensivo, um esposo áspero ou um filho de condução inquietante, sim­bolizam linhas de luta benéfica, em que podemos exercitar a paciência, a doçura e o devotamento até ao sacrifício!... Especialmente, no tocante aos filhos, não nos esqueçamos de que pertencem a Deus e à vida, acima de tudo!... Na esfera carnal, a Providência Divina nos sela a memória, no favor do renascimento, envolvendo-nos com o sopro re­novador de abençoada esperança! Por isso mesmo, não nos cabe olvidar que os filhos são sempre la­ços preciosos da existência, requisitando-nos equi­líbrio e discernimento em todas as decisões... Para desobrigar-nos da grande tarefa que a maternidade nos impõe, é imprescindível entender-lhes o psi­quismo diferente do nosso, a exigir, muitas vezes um tipo de felicidade que não se harmoniza com o nosso modo de ser. Saibamos, assim, prepará-los, sem egoísmo, para o destino que lhes compete! O carinho escravizante assemelha-se a um mel en­venenado, enredando-nos na sombra. Conservemos nosso espírito arejado pela justiça, para que a nos­sa afetividade seja uma bênção com a possibilidade de educar os que nos cercam, na escola do trabalho salutar!...
Na pausa que surgiu, espontânea, Zulmira in­dagou com simplicidade:
— Abnegada benfeitora, como agir para solu­cionar os problemas com segurança?
— Vocês superaram dias alarmantes de crise espiritual — informou a orientadora, prestimosa— e conquistaram o ensejo de reestruturação do próprio destino. Agora, repitamos, é tempo de se­mear. Valorizemos a oportunidade de reaproxima­ção. São vocês dois núcleos de força, suscetíveis de operar valiosas transformações nos grupos do­mésticos a que se ajustam. Façamos da amizade o entendimento fraterno que tudo compreende e tolera, movimenta e ajuda, na extensão do Sumo Bem. A vizinhança e a convivência, no fundo, são dons que o Senhor nos concede a benefício de nosso próprio reajuste.
Porque Zulmira e Antonina ensaiassem per­guntas novas, Clara acentuou:
— Não temam. A prece é o fio invisível de nossa comunhão com o Plano Divino e, à luz da oração, viveremos todos juntos. Em todas as dú­vidas, prefiramos para nós a renunciação construtiva. Situar a responsabilidade de nosso lado é facilitar a solução dos problemas.
Sorridente, rematou:
— Não nos esqueçamos do privilégio de servir.

 Logo após, o pequeno Júlio foi trazido ao recinto por vasto cortejo de gárrulas crianças.
Risos e lágrimas se misturaram no louvor à Bondade Divina.
Depois de algumas horas consagradas ao re­conforto, escoltamos, de novo, as duas mães, recon­duzindo-as ao corpo físico para o sublime labor no lar terrestre.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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