terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

RECONCILIAÇÃO

Amaro não registrou o convite da companheira desencarnada, em forma de palavras ouvidas, mas recebeu-o como silencioso apelo à vida mental.
Dirigiu-se a pequenina copa, pensando em Zul­mira, com o insopitável desejo de comunicar-lhe o estranho contentamento de que se via possuído.
Não seria justo envolver a esposa doente na onda de alegria em que se banhava?
Vimos que Odila tremeu um instante, ao lhe observar a súbita felicidade com a perspectiva de restauração do carinho para com a segunda mulher. Compreendi o esforço que a iniciativa lhe recla­mava ao coração feminino e, mais uma vez, reco­nheci que a morte do corpo não exonera o Espírito da obrigação de renovar-se. No fundo, não podia sentir, de imediato, plena isenção de ciúme, entre­tanto, aceitava o ideal de sublimação que se lhe implantara no sentimento e não parecia disposta a perder a oportunidade de reajuste.
Anotando-lhe a queda de forças, Clara abei­rou-se dela e falou, maternal:
— Prossigamos firmes. Todo bem que fizeres a Zulmira redundará em favor de ti mesma. Não esmoreças. Ajuda-te. A vontade, à procura do bem, realiza milagres em nós mesmos, O sacrifício é o preço da verdadeira felicidade.
O abraço afetuoso da benfeitora infundiu-lhe energias novas.
Os olhos dela brilharam outra vez.
Enlaçada ao marido, impeliu-o docemente ao leito em que a pobre doente repousava.
A enferma, por certo, desde muito perdera o contacto com qualquer manifestação afetiva por parte do companheiro, e, assim, ao lhe ver o sem­blante carinhoso e feliz, exibiu larga nota de espanto.
— Zulmira! — perguntou ele, inclinando-se para o seu rosto ossudo e desconsolado — estás realmente melhor?
— Sim... sim... — suspirou a interpelada, hesitante.
— Escuta! Hoje, amanheci pensando em nós, em nossa felicidade... Não julgas seja tempo de reagirmos contra o sofrimento que nos cerca? preo­cupo-me por ti, acamada e abatida, desde a morte de Júlio...
Notei que do tórax de Amaro emanava largo fluxo de energia radiante, assim como um jato de raios de luz verde-prateada que envolveram o bus­to de Zulmira, despertando-lhe emotividade incoer­cível.
A desventurada senhora começou a chorar, dando-nos a impressão de que os fluidos arremes­sados sobre ela lhe lavavam o coração.
Clarêncio, calmo, informou:
— Como vemos, a sinceridade dispõe de recur­sos característicos. Emite forças que não deixam margem a enganos. O sentimento puro com que Amaro se dirige agora à esposa é fator decisivo para que ela se reerga e se cure.
O ferroviário, auxiliado por Odila, enxugou as lágrimas que corriam copiosas daqueles olhos ma­cerados e tristes e continuou:
— Peço confies em mim! afinal de contas, so­mos companheiros um do outro... como poderei ser feliz sem o teu concurso? não nos casamos para chorar...
— Amaro! — exclamou a interlocutora ago­niada, conservando ainda os últimos resíduos mentais do complexo de culpa em que se torturava — como te agradeço a alegria desta hora!...
En­tretanto, a imagem de Júlio não me sai da lem­brança... Sinto que o remorso me persegue. Não fiz tudo o que eu devia para salvar o filhinho que me confiaste!...
— Esqueçamos o passado — asseverou o es­poso, decidido —, todos pertencemos a Deus e acre­dito que a Divina Vontade vive conosco, em toda parte. Indiscutivelmente, Júlio nos faz muita fal­ta, mas não podemos renunciar à vida que o Céu nos concedeu. É imprescindível lutar, procurando a vitória.
Ligado à mente da primeira esposa, que tudo fazia por ajudá-lo, prosseguiu com enternecedora inflexão de voz:
— Não olvides que pertencemos aos compro­missos morais que assumimos... O carinho do meu caçula significava muitíssimo para o meu coração, contudo, não pode ser mais importante que o nos­so amor!... Refaze-te! Vivamos nossa vida!... Temos Evelina e a nossa felicidade!...
A doente sentou-se, de olhos reanimados e di­ferentes.
E, enquanto o esposo acomodava-se ao lado dela, vimos Odila, de fisionomia satisfeita, dirigir-se ao quarto da filha.
Instintivamente acompanhámo-la, de modo a assisti-la em qualquer dificuldade. Ela, porém, com inefável surpresa para nós, colocou a destra sobre a fronte da menina, solicitando-lhe a presença.
Findos alguns instantes, Evelina, em Espírito, voltou ao aposento em que seu corpo repousava.
Vendo a mãezinha, correu a abraçá-la.
Fundiram-se ambas num amplexo longo e co­movedor, misturando-se as lágrimas.

— Enfim! enfim!... — clamou a jovem ma­ravilhada.
— Minha filha! minha filha!

E, em seguida, a genitora descansou nela os olhos inflamados de esperança, pedindo súplice:
— Evelina, ajuda-nos! Se não nos unirmos sob a luz da compreensão e do trabalho, nossa casa desaparecerá... Teu pai e eu não podemos dispen­sar-te o concurso. Da saúde e da paz de Zulmi­ra depende a feliz continuação de nossa tarefa... Deus não nos reúne para a indiferença ou para o egoísmo e sim para o serviço salutar de uns pelos outros!...
— Mãezinha — explicou a jovem extática —, tenho orado, tenho pedido ao seu coração nos au­xilie...
— Sim, Evelina, sei que em tua abnegação não te descuidas da prece. Jesus terá recebido teus rogos... Achava-me surda, vitimada pelo ruído destruidor de minha própria incompreensão. Sinto, porém, que minh'alma desperta hoje... e vejo que nos compete algo fazer para restaurar o valor de teu pai e a alegria de nossa casa...
— Continuarei orando...
— Não olvides a prece, querida, mas a súplica que não age pode ser uma flor sem perfume.
Pe­çamos o socorro do Senhor, algo realizando para contribuir em seu apostolado divino... Comecemos por refundir a confiança em tua nova mãe. Faze­-te melhor para ela... Procura-a, desdobra-te no trabalho de preservação da tranquilidade domés­tica, a fim de que Zulmira se veja segura de teu afeto e de teu entendimento filial... Uma rosa sobre a mesa, uma vassoura diligente, uma peça de roupa cuidadosamente guardada, uma escova no lugar que lhe compete, são serviços de Jesus, no santuário da família, com os quais devemos valo­rizar o pensamento religioso... Não te detenhas tão somente nas boas intenções. Movimenta-te no trabalho encorajador da harmonia. Sê o anjo do serviço em nossa casinha singela! Zulmira necessi­ta de uma irmã, de uma filha!...
Aproveita a oportunidade e faze o melhor!...

Evelina, com indefinível contentamento a ilu­minar-lhe o rosto, enlaçou a mãezinha com extre­mada ternura e beijou-a, muitas vezes.
Logo após, passando a obedecer à mensageira, retomou o corpo carnal e acordou deslumbrada.
Tão grande se lhe afigurava a própria ventura que detinha a impressão de estar descendo da es­fera celestial.
A imagem de Odila, carinhosa e bela, ocupa­va-lhe, agora, todo o espelho da mente.
Estendeu as mãos em torno como se ainda pudesse tocar a genitora com os dedos de carne, conservando perfeita lembrança da inolvidável en­trevista.

Intensamente feliz, ergueu-se de um salto e vestiu-se.
Finda a higiene rápida, vimos Odila recolhê-la nos braços, conduzindo-a igualmente até Zulmira.
Induzida pela influência materna, passou pela copa e chegou junto da madrasta, oferecendo-lhe pequena bandeja com a leve refeição da manhã.
Amaro e a companheira receberam-na, encan­tados.
- Meu Deus — disse a doente, sorrindo —, tenho a impressão de que um anjo penetrou nossa casa. Tudo hoje amanheceu contentamento e bom ânimo!...
Evelina alcançou o leito, reuniu os dois côn­juges num só abraço e falou, jubilosa:

— Sonhei com Mãezinha! Vi-a tão nítida, como se ainda estivesse conosco. Afirmou que necessita­mos de amor e recomendou seja eu para Zulmira a filha que ela não tem!... Ah! que felicidade!... Mamãe ouviu minhas preces!
O ferroviário anotou, satisfeito, a informação, guardando, porém, consigo mesmo as recordações da noite para não ferir as suscetibilidades da com­panheira, e Zulmira, a seu turno, embora lembrasse os repetidos pesadelos que atravessara, sentindo-se atormentada pelos ciúmes de Odila, abafou as próprias reminiscências, para aderir com toda a alma ao otimismo daquele abençoado momento de paz e renovação.

Fixando a madrasta, com embevecimento, a menina acrescentou:
— Quero ser melhor, mais diligente e mais amiga!... Papai, você e eu seremos doravante mais felizes.
A pobre senhora suspirou reconfortada e aduziu:
— Sem dúvida alguma, Odila deve ser o nos­so gênio protetor... E’ muita alegria nesta manhã para que a nossa ventura seja simples sonho ou mera coincidência!

Aquele testemunho de gratidão, partido com a melhor espontaneidade da mulher considerada, até então, por inimiga, tocou as recônditas fibras da primeira esposa de Amaro que, incapaz de suportar a emoção, começou a chorar entre o reco­nhecimento e o regozijo.
Irmã Clara abraçou-a e falou, humilde:

— Chora, minha filha! Chora de júbilo! Em verdade, quando o amor sublime penetra em nosso coração, a luz do Senhor passa a reger os passos de nossa vida.




Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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