quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

MÃE E FILHO

A alegria plena coroara o trio doméstico.
Mostrando a expectativa de uma colegial preo­cupada em receber a aprovação dos mentores, Odila ergueu os olhos lacrimosos para Irmã Clara, per­guntando:
— Terei agido corretamente?

Lia-se-lhe no rosto a necessidade de uma frase estimulante.
A venerável amiga conchegou-a de encontro ao coração.
— Venceste, valorosa — disse, terna —; com­preendeste o santo dever do amor. Abençoarás para sempre este maravilhoso dia de renúncia e doação de ti mesma.

Vimos Odila colar-se a ela, à maneira de uma criança nos braços maternais, chorando copiosa­mente.
— Não te comovas tanto assim! — apelou a benfeitora, osculando-lhe os cabelos.

Sensibilizando-nos igualmente, a primeira es­posa de Amaro respondeu com dificuldade:
— Meu pranto não é de sofrimento... Sinto-me agora leve e feliz... como não compreendia eu assim, antes!...

— Sim — elucidou Clara, de modo significa­tivo —, perdeste peso espiritual, habilitando-te à elevação de nível. Nossas paixões inferiores íman­tam-nos à Terra, como o visco prende o pássaro a distância das alturas...
E, afagando-a, acentuou, bondosa:
— Vamos! Deste agora o amor puro e, por isso, o amor puro não te faltará. De ora em diante, serás aqui bem-aventurada mensageira, de vez que o teu coração permanecerá em serviço dos anjos guardiães de nossos destinos, que velam por nós abnegadamente, esperando-nos na Vida Mais Alta. Cedendo o carinho de teu companheiro à outra mu­lher, de cuja colaboração necessita ele para redi­mir-se, conquistaste nele novo patrimônio de afe­tividade, e, aproximando a filhinha daquela a quem devemos querer como irmã, adquiriste o mereci­mento indispensável para recuperar o filhinho, cujo futuro poderás orientar... Hoje mesmo, estarás ao lado de teu Júlio...

Odila, transfigurada, estampou no semblante a luz da felicidade que lhe fluía do mundo interior.
O Sol inundava a Terra de raios vivificantes, quando a reconduzimos ao hospital, com a promes­sa de buscá-la, mais tarde, para a viagem ao Lar da Bênção.

Com efeito, transcorridas algumas horas, quan­do a pausa dos nossos compromissos de trabalho nos ofereceu a oportunidade precisa, convocamo-la ao reencontro.
Sustentada nos braços de Clara, a mãezinha de Júlio revelava inexcedível contentamento.
Era a primeira vez, depois da morte física, que se confiava a romagem tão linda, prorrompendo em exclamações admirativas, ante os surpreenden­tes jogos da luz.
Nas vizinhanças do sítio para o qual nos diri­gíamos, inalava o ar tonificante a longos haustos, deslumbrando-se na visão da Natureza saturada de perfumes e adornada de flores.
Extasiou-se na contemplação das centenas de pequeninos, que brincavam festivamente. Muito pá­lida, de atenção presa à multidão infantil, na pro­cura ansiosa do filho, achava-se mentalmente muito distanciada de nosso grupo. Por isso mesmo, deixava-se conduzir qual se fôra um autômato.
Acompanhando Clarêncio, atingimos a residên­cia de Blandina, que nos acolheu com a gentileza habitual.

Entramos.

Não houve necessidade de muitas palavras.
Atraida pelo grande berço que se levantava à nossa vista, Odila precipitou-se sobre o menino enfermo, bradando, alarmada:
— Meu filho! Júlio! Meu filho!... Indubitàvelmente, a Sabedoria Universal colo­cou imperscrutáveis segredos no carinho materno. Algo de milagroso e divino existe nos laços que unem mães e filhos que, por enquanto, não pode­mos apreender.
A criança doente transformou-se, de súbito.
Indefinível expressão de felicidade cobriu-lhe o semblante.
— Mãe! Mãe!... — gritou, respondendo.
E alongou os braços, agarrando-se-lhe ao busto.
Em lágrimas, Odila retirou-o instintivamente do leito, beijando-o enternecida.

Quando se lhe asserenou a desbordante emoti­vidade, sentou-se ao nosso lado, trazendo o filho ao colo.
Júlio, completamente modificado, contava-lhe quanto lhe doía a garganta, mostrando-lhe a glote extensamente ferida.

E terminada que foi a hora comovente que nos empolgara a todos, Blandina abriu a conversação geral, acentuando, contente:
— Sabíamos que a Divina Bondade não dei­xaria o nosso doentinho sem a ternura maternal.
Júlio agora terá junto dele a insubstituível dedicação.
Odila, que se mostrava compreensivelmente conturbada, ante a posição orgânica do menino, nada respondeu; contudo, Clara considerou, afe­tuosa:
— Esperamos localizar nossa amiga no Par­que, por algum tempo, e, certo, sentirá prazer em encarregar-se do pequenino.
— Sim, a Escola das Mães apresenta vastas disponibilidades — informou Blandina, prestimosa.
— Odila poderá entregar-se com segurança à ta­refa assistencial que Júlio exige. Receberá todos os recursos...
— Aflige-me encontrá-lo assim — alegou a genitora preocupada, indicando o pequeno enfermo —, não posso atinar com a razão de uma úlcera tão grande, sem o corpo de carne... não tenho bases para entender de uma só vez tudo quanto vejo, mesmo porque também eu andava louca, in­capaz de raciocinar...

Reparei que o Ministro e a Irmã Clara se en­treolharam, de modo expressivo, dando-me a idéia de que conversavam, através do pensamento.

Assinalando as doloridas referências maternas, a instrutora designou com a destra o nosso orien­tador, ajuntando bem humorada:
— Clarêncio tem a palavra elucidativa.
— Sim — ponderou o Ministro, cauteloso —, nossa irmã, como é natural, encontrará pela frente variados problemas ligados ao caminho de elevação que lhe é próprio. Achamo-nos todos infinitamente longe do Céu que fantasiávamos na Terra e cada qual de nós detém consigo deficiências que será preciso superar. O passado reflete-se no presente.
Sorrindo, acrescentou:
— Nosso destino é assim como o rio. Por mais diferenciado se encontre, à distância da nascente que lhe dá origem, está sempre ligado a ela pela corrente em ação contínua...

— Procurarei compreender — disse Odila mais segura de si —, sou mãe e não posso desvencilhar­-me da obrigação de amparar meu filhinho. Dis­pensar-lhe-ei todos os cuidados imprescindíveis ao seu bem-estar. Sinto que a felicidade pode ser conquistada no mundo a que fomos trazidos pela renovação... Trabalharei quanto estiver ao meu alcance para ver Júlio integralmente refeito. Hoje, novos ideais me banham o coração. É imperioso esforçar-me. Todos os que amamos virão ter co­nosco, mais cedo ou mais tarde... Esperanças di­ferentes me animam o espírito. Amanhã, no porvir talvez próximo, terei meus familiares aqui, de novo, e não posso olvidar a necessidade de algo fa­zer para conseguir o abrigo de que necessitamos...
Passeou o olhar vago e cismarento pelo recinto como se estivesse contemplando remotos horizon­tes e concluiu:
— Um lar... a felicidade restaurada... a bên­ção do reencontro...

Por largo tempo, o comentário edificante bri­lhou na sala, aquecendo a chama da amizade e da confiança em nossos corações.

Blandina e Mariana prometeram cooperar, in­sistindo para que Odila se demorasse junto delas, até situar-se, em definitivo, no educandário a que se destinava.
A renovada senhora aceitou, reconhecidamente.

Despedimo-nos, felizes.

Após nos separarmos de Clara, retomando o caminho de volta ao nosso domicílio espiritual, jul­guei conveniente interpelar o instrutor, acerca dos problemas que me esfervilhavam no cérebro.
Porque não esclarecer Odila, com respeito ao pretérito de Júlio? Seria aconselhável deixá-la en­tregue a informações deficientes, quando lhe co­nhecíamos extensamente os enigmas da organização familiar? porque não lhe explanar francamente o impositivo da reencarnação do menino?

Clarêncio, como de outras vezes, ouviu sereno e generoso.
Quando acabei o interrogatório, replicou sem alterar-se:
— À primeira vista, seria efetivamente esse o caminho a seguir, entretanto as recordações do pretérito não devem ser totalmente despertadas, para que ansiedades inúteis não nos dilacerem o presente. A verdade para a alma é como o pão para o corpo que não pode exorbitar da quota necessária a cada dia. Toda precipitação gera de­sastres. Além do mais, não nos cabe a vaidade de qualquer antecipação a providências que serão agradáveis e construtivas ao amor de nossa irmã.
Sentindo-se ainda plenamente integrada no carinho materno, ela própria assumirá a responsabilidade do trabalho alusivo à reencarnação do pequeno. Advogando ela mesma essa medida e destinando-se a criança ao seu antigo lar, encontrará no assunto abençoado serviço de fraternidade, ao mesmo tem­po que se reconhecerá mais responsável. Se mo­vêssemos as decisões, Odila observar-se-ia anulada em sua capacidade de agir, ao passo que, confiando a ela as deliberações que o caso reclama, adquirirá novo interesse para auxiliar Zulmira, de vez que a segunda esposa de Amaro substitui-la-á na con­dição de mãe, oferecendo novo corpo ao filhinho...

Admirado com os apontamentos ouvidos, vi-me satisfeito na inquirição.
Clarêncio, todavia, com o sorriso natural que lhe marcava habitualmente o semblante, aduziu, calmo:
— A vida é uma escola e cada criatura, dentro dela, deve dar a própria lição. Esperemos agora alguns dias. Interessada em socorrer o filhinho doente, a própria Odila virá até nós, lembrando para ele a felicidade da volta à Terra.



Do livro "ENTRE A TERRA E O CÉU", pelo espírito André Luiz - psicografia de Chico Xavier.

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